Foi aprovada e publicada recentemente a Recomendação nº. 140, de 21.8.2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que “recomenda e regulamenta a adoção de métodos de resolução consensual de conflitos pela Administração Pública dos órgãos do Poder Judiciário em controvérsias oriundas de contratos administrativos”.
A medida, que partiu da iniciativa da advocacia, por meio da Seccional do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/DF), e que foi objeto de amplo debate no âmbito do CNJ, é salutar e alvissareira, uma vez que permite o endereçamento de diversos possíveis conflitos desencadeados a partir da organização, pelo Poder Judiciário, no exercício de sua função administrativa, de procedimentos licitatórios para contratação de prestadores de serviços e materiais.
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Afinal, como se sabe, o problema exsurge em caso de inexecução de contratos administrativos, oportunidade em que a administração do órgão judiciário se incumbe de apurar eventuais falhas e impor penalidades, instaurando, para tanto, procedimento administrativo, para aplicação das sanções previstas no art. 87 da Lei nº. 8.666/1993 e no art. 156 da Lei nº. 14.133/2021, que vão desde a advertência até a declaração de inidoneidade do particular para licitar e contratar com a Administração Pública. As penalidades, decerto, devem ser proporcionais à gravidade e reprovabilidade do caso concreto.
Quando o particular, no exercício do seu direito de petição, questiona pela via administrativa o juízo de proporcionalidade realizado pela administração do órgão judiciário para aplicação das penalidades da aludida legislação, origina-se um conflito entre as partes. Nessa esteira, verificava-se com frequência uma insegurança jurídica quanto à possibilidade de qualquer conciliação ou mediação em relação às penalidades administrativas, sob o receio da administração do órgão judiciário de que a matéria poderia ser considerada intransigível por órgãos de controle, comprometendo a eficácia e a efetividade das soluções consensuais na atuação administrativa do Poder Judiciário.
A concepção de que os direitos em questão seriam indisponíveis, entretanto, foi há muito superada pela doutrina e pela própria jurisprudência, que, embora edificada na função jurisdicional, por vezes não encontrava eco na atuação administrativa do próprio Poder Judiciário. Afinal, a própria Lei nº. 13.140/2015, que dispõe sobre a mediação entre particulares e a Administração Pública, prescreve, em seu art. 3º, que “pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação”.
Isto é, a liberdade contratual da Administração Pública se insere no campo do interesse público secundário, admitindo-se amplamente a transação, uma vez que até mesmo os direitos indisponíveis estão inseridos no campo de incidência da Lei nº. 13.140/2015.
Afinal, ainda que o interesse público primário seja indisponível – por exemplo, os direitos à vida, à liberdade, à saúde e à dignidade –, os modos de materialização de tal direito, que integram o interesse público secundário, como a compra de materiais, a gestão de hospitais e a construção de equipamentos públicos, ocorrem por meio de negócios jurídicos, que podem ser celebrados entre o particular e a Administração Pública, não perdendo a característica de serem tipicamente patrimoniais – e, portanto, disponíveis.
É certo, além disso, que a natureza patrimonial de um direito não se restringe ao seu conteúdo monetário, de modo que as controvérsias relacionadas às obrigações contratuais, ainda que sem imediata expressão econômica, podem ser objeto de métodos alternativos de solução de conflitos (como a transação), desde que tenham repercussões patrimoniais, na esteira do próprio art. 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“LINDB”), que permite a celebração de acordos para combater irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público.
Nessa esteira, a publicação da Recomendação nº. 140/2023 do CNJ traz novos ventos de segurança jurídica para o tema, prevendo que “os órgãos do Poder Judiciário, em sua atuação administrativa, poderão empregar métodos de resolução consensual de conflitos em matéria de contratos administrativos” (art. 1º), podendo a iniciativa do acordo ser proposta pelo particular ou pela própria Administração Pública, não só em fase extrajudicial, mas inclusive no curso de ação judicial.
A Recomendação deixa claro, no seu art. 4º, que “pode[rão] ser objeto de composição a aplicação das sanções administrativas a que se referem os arts. 156, 162 e 163 da Lei n. 14.133/2021, com base, também, nos arts. 86 a 88 da Lei n. 8.666/1993”.
Ou seja, fica claro que a aplicação de advertências, multas, sanções de impedimento ou de declaração de inidoneidade para licitar e contratar, bem como a própria reparação de eventual ilícito contratual, podem ser objeto de composição entre o particular e a Administração, “admit[indo]-se a redução ou a isenção de uma ou mais sanções aplicadas, a partir da análise da extensão do dano e da gravidade e reprovabilidade do fato” (par. único do art. 4º) e também “admit[indo]-se composição sobre a forma, o prazo e o modo de cumprimento da obrigação de reparação integral do dano”.
Caso o acordo seja celebrado na esfera extrajudicial – no exercício da função administrativa do órgão judiciário –, deverá ser homologado pela autoridade máxima do respectivo órgão do Poder Judiciário. É certo, por outro lado, que as avenças celebradas no curso de ação judicial submetem-se às previsões do Código de Processo Civil, que estabelece, no seu art. 487, III, ‘b’, a prerrogativa do respectivo juiz da causa de homologar a transação entre as partes.
Em suma, a regulamentação do tema pelo CNJ constitui em relevante passo em benefício da segurança jurídica para os gestores responsáveis pela Administração Judiciária, promovendo a uniformização de entendimento no sentido de que é perfeitamente possível – e recomendável – a celebração de acordos versando sobre controvérsias e penalidades envolvendo os contratos administrativos celebrados pelo Poder Judiciário no exercício de suas funções administrativas.