As alterações introduzidas na Lei Federal n.º 8.429/1992 por força da redação dada pela vigência da Lei n.º 14.230/2021 produziram significativos impactos na aplicação da Lei de Improbidade Administrativa, especialmente no que se refere à subtração da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa.
A Constituição Federal de 1988 delegou ao legislador ordinário a necessária regulamentação do combate à corrupção no Brasil, o que culminou, mais tarde, na sanção da Lei n.º 8.429 em 1992 pelo então presidente Fernando Collor,[i] que, em sua campanha, assumiu um discurso contra os servidores públicos de altos salários, os chamados “marajás”, em um momento político em que o país vivenciava um de seus maiores escândalos de corrupção.[ii]
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Nota-se que a aplicação da lei gerou, ao longo dos mais de 20 (vinte) anos de sua vigência, expressivas controvérsias na interpretação acerca da necessária comprovação do elemento subjetivo para a responsabilização do agente por atos de improbidade administrativa. Isso ocorreu porque, para a caracterização e tipificação dos atos de improbidade administrativa, o artigo 10 (atos de improbidade que causam prejuízo ao erário) estabelecia expressamente a previsão da modalidade culposa, enquanto os artigos 9º e 11 não traziam a previsão expressa.
Parte da doutrina e jurisprudência interpretava e aplicava a legislação na modalidade culposa para todos os atos de improbidade administrativa, em especial a improbidade por lesão a princípios administrativos, nos termos do artigo 11 da lei,[iii] sendo suficiente a ilicitude ou imoralidade da conduta. Isso por si só oportunizava amplo espaço para a banalização do punitivismo daqueles agentes que, pelas mais diversas razões, tivessem atuado com descuido em suas funções públicas.
Ao longo dos anos, a observação da realidade evidenciou que o ostracismo social causado pela condição de réu em processo de improbidade administrativa, além do fundado receio de ser responsabilizado e culpabilizado por ato de improbidade, ocasionou efeitos indesejados. Isso se caracteriza no denominado “direito administrativo do medo”,[iv] marcado por uma atuação defensiva de agentes e gestores públicos, afastando-os da necessária atuação com inovação e iniciativa na concretização de políticas públicas.
Portanto, a lei de improbidade administrativa, em sua antiga forma, possibilitava utilizações disfuncionais, distantes da ideia de um Estado prestacional que tem como missão primordial a efetivação de políticas públicas, culminando, por consequência, na propagação de uma cultura do medo entre os administradores e agentes da Administração Pública.
Como se vê da exposição das justificativas do projeto de lei que originou a Lei n.º 14.230/2021, não é dogmaticamente razoável compreender como ato de improbidade o equívoco, o erro ou a omissão decorrente de negligência, imprudência ou imperícia. Não se pretende declinar da expressiva necessidade do combate rígido e sistemático à corrupção, mas sim reconhecer que o Estado tem mecanismos diferentes de responsabilização do ilícito administrativo, inclusive com as consequências da lei civil quanto ao ressarcimento quando a conduta do agente causar lesão ao erário.
Buscou-se, com as imperiosas alterações na lei de improbidade administrativa, coibir acusações seletivas e genéricas, impactando, por outro lado, a atuação mais eficiente, inovadora e segura do agente público, significativamente mais compatível com os direitos administrativos e garantias constitucionais.
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[i] Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1992/lei-8429-2-junho-1992-357452-exposicaodemotivos-149644-pl.html, acesso em 30/out/2023.
[ii] Caso “Anões do Orçamento”, cuja ocorrência deu-se entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, culminando na investigação de 37 deputados, 6 cassações e 4 renúncias. Disponível em: https://cbn.globoradio.globo.com/institucional/historia/aniversario/cbn-25-anos/boletins/2016/09/21/1993-BRASIL-VIVE-O-ESCANDALO-DOS-ANOES-DO-ORCAMENTO.htm, acesso em 30/out/2023.
[iii] JURUENA, Cynthia Gruendling; LEAL, Rogério Gesta. Interlocuções necessárias entre moralidade administrativa e probidade administrativa. Barbarói, Ed. Especial, n. 42, 2014.
[iv] SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito Administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. 1ª ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.