As autoridades administrativas, ao constituírem créditos tributários, devem necessariamente observar o que a legislação prevê, por força do princípio da legalidade (art. 150, I, da Constituição Federal). É exatamente por isso, aliás, que o Código Tributário Nacional (CTN), ao tratar do lançamento, é enfático ao prescrever que a atividade de constituição desses créditos “é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional (art. 142, parágrafo único).
É evidente, portanto, que a Administração Pública, ao constituir as relações jurídicas tributárias, deve fazê-lo indicando como sujeito passivo a pessoa que, nos termos da ordem em vigor, compete efetuar o pagamento do tributo.
Pois bem. Nos termos do art. 132 do CTN, as pessoas jurídicas “incorporadoras” são responsáveis pelos débitos das empresas por elas incorporadas. Como consequência, os lançamentos realizados após tal operação societária deverão indicar como sujeito passivo a incorporadora, não a incorporada, sob pena de nulidade.
Essa posição, inclusive, já foi sedimentada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento de recurso representativo da controvérsia. Ao examinar a decisão proferida no julgamento do Tema Repetitivo 1049[1], verifica-se que, como regra, a Corte entende que a pessoa jurídica extinta por incorporação não pode figurar como sujeito passivo de lançamentos realizados após a operação societária. Vejamos:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. EXECUÇÃO FISCAL. SUCESSÃO EMPRESARIAL, POR INCORPORAÇÃO. OCORRÊNCIA ANTES DO LANÇAMENTO, SEM PRÉVIA COMUNICAÇÃO AO FISCO. REDIRECIONAMENTO. POSSIBILIDADE. SUBSTITUIÇÃO DA CDA. DESNECESSIDADE.
1. A interpretação conjunta dos arts. 1.118 do Código Civil e 123 do CTN revela que o negócio jurídico que culmina na extinção na pessoa jurídica por incorporação empresarial somente surte seus efeitos na esfera tributária depois de essa operação ser pessoalmente comunicada ao fisco, pois somente a partir de então é que Administração Tributária saberá da modificação do sujeito passivo e poderá realizar os novos lançamentos em nome da empresa incorporadora (art. 121 do CTN) e cobrar dela, na condição de sucessora, os créditos já constituídos (art. 132 do CTN).
2. Se a incorporação não foi oportunamente informada, é de se considerar válido o lançamento realizado em face da contribuinte original que veio a ser incorporada, não havendo a necessidade de modificação desse ato administrativo para fazer constar o nome da empresa incorporadora, sob pena de permitir que esta última se beneficie de sua própria omissão.
3. Por outro lado, se ocorrer a comunicação da sucessão empresarial ao fisco antes do surgimento do fato gerador, é de se reconhecer a nulidade do lançamento equivocadamente realizado em nome da empresa extinta (incorporada) e, por conseguinte, a impossibilidade de modificação do sujeito passivo diretamente no âmbito da execução fiscal, sendo vedada a substituição da CDA para esse propósito, consoante posição já sedimentada na Súmula 392 do STJ.
4. Na incorporação empresarial, a sucessora assume todo o passivo tributário da empresa sucedida, respondendo em nome próprio pela quitação dos créditos validamente constituídos contra a então contribuinte (arts. 1.116 do Código Civil e 132 do CTN).
5. Cuidando de imposição legal de automática responsabilidade, que não está relacionada com o surgimento da obrigação, mas com o seu inadimplemento, a empresa sucessora poderá ser acionada independentemente de qualquer outra diligência por parte da Fazenda credora, não havendo necessidade de substituição ou emenda da CDA para que ocorra o imediato redirecionamento da execução fiscal. Precedentes.
6. Para os fins do art. 1.036 do CPC, firma-se a seguinte tese: “A execução fiscal pode ser redirecionada em desfavor da empresa sucessora para cobrança de crédito tributário relativo a fato gerador ocorrido posteriormente à incorporação empresarial e ainda lançado em nome da sucedida, sem a necessidade de modificação da Certidão de Dívida Ativa, quando verificado que esse negócio jurídico não foi informado oportunamente ao fisco.” 7. Recurso especial parcialmente provido.
Note-se que, no entender da Corte Superior, o lançamento que indica a empresa incorporada será considerado válido se, e somente se, a incorporação não foi oportunamente comunicada ao fisco. Verificando-se, pois, que o contribuinte comunicou formalmente o fisco sobre o negócio jurídico, os lançamentos posteriormente realizados, ainda que relativos a fatos ocorridos antes da incorporação, deverão indicar como sujeito passivo a incorporadora.
Não é esse, porém, o entendimento que tem prevalecido no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Conforme noticiado aqui, a 2ª Turma da Câmara Superior do Carf decidiu, recentemente, por afastar a nulidade de auto de infração lavrado contra empresa incorporada, a despeito de a incorporação ter ocorrido antes do lançamento e ter sido devidamente comunicada à Receita Federal, com a devida baixa do CNPJ incorporado.
Ao consultar os casos citados, verifica-se que, quando do julgamento dos recursos ordinários interpostos pelos contribuintes, prevaleceu o entendimento do relator, Conselheiro Denny Medeiros da Silveira, que reconhecia a nulidade das autuações lavradas contra a empresa incorporada. Essa decisão, no entanto, foi reformada pela Câmara Superior sob o argumento de que o erro na identificação do sujeito passivo não trouxe qualquer prejuízo ao contribuinte e, portanto, não acarretaria a nulidade das autuações.
Essa posição, é verdade, não é nova. Consultando a jurisprudência da Corte Administrativa, é possível identificar decisões no mesmo sentido proferidas há mais de 15 anos.[2]
Seabra Fagundes[3], por exemplo, argumentava que os defeitos do ato administrativo não acarretariam a nulidade do ato quando ausente o prejuízo. Igual posicionamento é defendido por J.J. Calmon de Passos4, o qual, ao tratar das nulidades processuais, afirma que “a nulidade (cominação expressa) não será pronunciada quando não ocorrer prejuízo. Isto é, o ato imperfeito, mesmo quando tal imperfeição haja sido sancionada expressamente com a conseqüência (sic) da nulidade, é ato eficaz, desde que a imperfeição não haja ocasionado prejuízo”.
O problema é que, além de violar o entendimento pacificado do STJ sobre o tema, baseia-se numa premissa um tanto perigosa, posto que inexiste, na legislação que rege o processo administrativo federal, nenhuma norma determinando que um vício somente gera nulidade se acarretar prejuízo para a parte interessada.
[1] REsp 1848993/SP, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/08/2020, DJe 09/09/2020.
[2] A título de exemplo, podemos citar o ACÓRDÃO 101-94.717 (1º CC, 1ª Câmara, DJ 16/03/2006) e o ACÓRDÃO 01-05.113 (CSRF, DJ 09/10/2004).
[3] FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 50/51.
[4] PASSOS, J. J. Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 131.