STF deve descriminalizar aborto para que o Brasil se torne mais livre

Em fevereiro de 2022, o Movimento Causa Justa conseguiu a descriminalização do aborto na Colômbia até a 24ª semana de gestação, graças a uma ação que apresentamos à Corte Constitucional do país. Foi uma vitória imensa que veio após muito trabalho coletivo e diversos debates dentro do movimento feminista colombiano.

O movimento se propôs a descriminalizar socialmente o aborto, e a oportunidade de uma ação judicial surgiu como uma das estratégias. Para nós, estava claro que o aborto livre deveria ser reconhecido como uma garantia essencial para a plena cidadania das mulheres e para a proteção dos direitos fundamentais previstos em nossa Carta política. Agora, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem a oportunidade de oferecer a mesma garantia para mulheres, pessoas trans e não binárias, decidindo favoravelmente sobre a ADPF 442, que examina a constitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam o aborto.

O processo de descriminalização do aborto na Colômbia representou um grande avanço na discussão legal e social sobre como regulamentá-lo. Nós, da Causa Justa, pedimos a eliminação desse crime com a convicção de que a interrupção voluntária da gravidez deve ser um serviço de saúde essencial e inadiável e, portanto, deve ser regulamentado sob a ótica da saúde pública e dos direitos humanos, e não do direito penal.

De fato, alguns meses após a apresentação da ação, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu diretrizes técnicas recomendando a descriminalização em todos os casos do aborto para eliminar os obstáculos a esse serviço. Argumentos como esses são os que chegaram ao STF e que, com a evidência dos graves impactos da criminalização, deveriam ser suficientes para que a corte tome uma decisão histórica em favor das mulheres, pessoas trans e não binárias no Brasil.

O que acontece em contextos como o brasileiro, e como a corte colombiana entendeu com nossa ação, é que os modelos de aborto permitido em circunstâncias excepcionais específicas, como o brasileiro (causales em espanhol, grounds-based approaches em inglês), geram medo em pacientes, profissionais de saúde e autoridades que preferem interpretar a lei de forma restritiva para evitar investigações criminais. Esse medo faz com que muitas mulheres não busquem atendimento médico, o que leva a mortes evitáveis por abortos inseguros. Além disso, a criminalização do aborto resulta na perseguição desproporcional de mulheres que enfrentam a pobreza e têm menos acesso à educação. Aquelas com poder aquisitivo podem acessar serviços médicos privados que reduzem o risco de maus tratos ou até mesmo viajar para outros países.

Mulheres negras, quilombolas e indígenas que precisam acessar o aborto enfrentam desafios adicionais, incluindo exclusão e maus tratos relacionados ao racismo. Para muitas delas, existem barreiras estruturais para acessar serviços de saúde, que se somam às barreiras específicas que costumam surgir ao solicitar um aborto. O uso inadequado da objeção de consciência e a falta de educação sexual abrangente agravam ainda mais essa situação. Além disso, a interpretação conferida a certas leis atuais representa uma ameaça à confidencialidade das informações das pacientes. A isso se soma o estigma social que perpetua visões negativas sobre o aborto.

Um caso doloroso que reflete essa situação é o de uma menina de 11 anos que, no final do ano passado, teve que enfrentar sua segunda gravidez forçada como resultado de um estupro no Piauí. Para proteger sua identidade, ela foi chamada de Menina P. Nessa tenra idade, ela agora enfrenta uma situação extremamente difícil, devido ao fato de o Estado não ter adotado medidas para protegê-la, apesar de estar ciente da violência e vulnerabilidade que ela enfrentava.

O Center for Reproductive Rights, em conjunto com organizações parceiras no Brasil, conseguiu documentar que, pelo menos durante essa segunda gravidez, Menina P manifestou o desejo de interromper a gestação. Apesar de ter o direito legal de acessar o procedimento, ela enfrentou numerosos obstáculos e pressões de dissuasão, o que resultou em sua desistência. Profissionais de saúde minimizaram os múltiplos riscos associados à gravidez e ao parto de uma menina de sua idade e falsamente insistiram nos supostos perigos de fazer um aborto. Casos como o de Menina P exemplificam a insuficiência do modelo adotado no Brasil e a necessidade de descriminalizar o aborto para abordá-lo de forma abrangente como o serviço de saúde que é.

Portanto, como identificamos na Causa Justa, no contexto colombiano, todas essas barreiras para acessar os serviços de aborto afetam vários direitos fundamentais, protegidos pela Constituição do Brasil e por tratados regionais e internacionais em vigor no país, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Exemplos desses direitos são o direito à vida e à saúde: quando um Estado nega o acesso ao aborto, está negando efetivamente um serviço de saúde sexual e reprodutiva (como reconhecido pela OMS) que afeta o bem-estar físico e mental de quem precisa. Além disso, tem impactos negativos na autonomia e na dignidade das pessoas, dois valores essenciais para garantir um projeto de vida livre. O Estado brasileiro tem a obrigação de garantir a saúde, em todos os níveis, das mulheres e das pessoas com capacidade de engravidar, para que possam escolher o tipo de vida que desejam levar.

Outro direito fundamental que deve ser protegido, e que é a missão do Center for Reproductive Rights, é a autonomia reprodutiva, que está intimamente ligada ao direito à vida privada. Ou seja, a garantia de que toda pessoa possa tomar decisões sobre se quer ou não ter filhos, quantos e quando. Para garantir isso, é fundamental ter o aborto como opção, um procedimento que pode servir como uma proteção contra a intrusão do Estado nas decisões mais íntimas de cada um. A criminalização do aborto restringe a liberdade pessoal e deixa as pessoas à mercê de decisões externas, sem permitir que controlem seus próprios corpos e o rumo de suas próprias vidas.

Sistemas jurídicos que restringem as possibilidades de acesso ao aborto violam também o direito de acesso à informação: o medo associado à criminalização faz com que as pacientes não obtenham informações necessárias para decidir sobre sua saúde reprodutiva. É possível argumentar, ainda, que os quadros legais que dificultam a interrupção voluntária da gravidez podem representar uma séria falha na obrigação dos Estados de prevenir e punir a tortura. A negação do aborto em circunstâncias específicas, como nos casos de violência sexual, foi reconhecida pelo direito internacional dos direitos humanos como uma possível forma de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante.

Diante de tudo isso, considero que o STF tem uma grande oportunidade de estabelecer um precedente de liberdade que, no futuro, pode evitar a repetição de casos como o de Menina P, cuja grave situação é lamentavelmente recorrente no Brasil. De acordo com o sistema de informações sobre nascidos vivos, em 2020, 17.500 meninas enfrentaram gravidezes forçadas devido a violência sexual.

Esperamos que em breve o Brasil se una à Maré Verde Latino-Americana, o movimento feminista que saiu às ruas exigindo o aborto livre com lenços verdes, e à tendência global de mais de 60 países que, nos últimos 30 anos, modificaram suas leis para facilitar o acesso à interrupção voluntária da gravidez. Como dizemos na Colômbia: não há dúvida de que a eliminação do crime de aborto é uma causa fundamental e histórica, é uma Causa Justa.

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