Caso Demóstenes: inelegibilidade de senador deve ser maior que a de deputado?

No âmbito do Direito Constitucional Parlamentar, a cassação de mandato por quebra de decoro é assunto permeado de controvérsias e conta com escassa literatura. Em texto passado, comentou-se sobre os poderes ainda limitados dos Conselhos de Ética de Decoro das Casas Legislativas. Também já se explicou a dificuldade em torno das amplas margens de definição de decoro para fins de enquadramento das condutas que podem dar margem à cassação. E outra coluna ainda foi dedicada à inelegibilidade do parlamentar que teve seu mandato cassado por infração ao art. 55, incisos I e II, da CF.

Retomando esse último tema, a coluna de hoje discute precisamente o prazo de inelegibilidade previsto no art. 1º, inciso I, alínea b, da LC 64/1990, com redação dada pela LC 81/1994, a partir da decisão tomada na Rcl 29.870 apresentada pelo ex-senador Demóstenes Torres. Antes de chegar no cerne da controvérsia, convém resgatar o caso concreto.

Após acusações de envolvimento com o Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, o então senador Demóstenes teve o seu mandato cassado em 11 de julho de 2012 com 56 votos pela cassação, 19 contra e 5 abstenções. A decisão foi materializada na Resolução 20/2012 do Senado Federal.

As mesmas condutas que ensejaram a perda do mandato eram objeto de uma ação penal, cujas provas foram declaradas nulas, anos depois, no RHC 135.683 (julgado em 15/10/2016, publicado em 3/4/2017). O STF entendeu pela nulidade das provas colhidas na Operação Vegas e Monte Carlos, realizadas em primeiro grau, por afronta à competência do STF para processar e julgar originariamente a causa nos termos do art. 102, inciso I, alíneas b e c, da CF, ante o surgimento de indícios do envolvimento de senador da República.

Após o referido julgamento, o ex-senador tentou proceder, administrativamente, à revisão da Resolução 20, que decretou a perda do seu mandato. Chegou a pedir até os salários atrasados, mas o pedido foi rejeitado pelo Senado.

Então, sustentando ser necessário garantir a autoridade do RHC 135.683, o ex-senador apresentou a Rcl 29.870, em 1º de março de 2018, apontando como ato reclamado a omissão do presidente do Senado em revisar a Resolução 20/2012. Entre os pedidos estava ainda a restituição do seu mandato de senador e o retorno de sua condição de elegibilidade (capacidade eleitoral passiva).

Demóstenes sustentou a presença de periculum in mora, ante a iminência de encerramento do mandato eletivo do qual fora afastado por decisão do Senado, e por estar impedido de participar do processo eleitoral de 2018.

Pois bem. Em 27 de março de 2018, o relator, ministro Dias Toffoli, deferiu em parte a tutela de urgência solicitada simplesmente para “suspender a eficácia da Resolução nº 20/2012 do Senado Federal relativamente ao critério de inelegibilidade previsto na alínea b do inciso I do art. 1º da Lei Complementar nº 64/1990”. Ou seja, afastou uma das principais consequências da cassação: a inelegibilidade.

Ao menos na fundamentação da referida decisão restou assentada a impossibilidade de retorno do reclamante ao exercício do mandato de senador, tendo em vista: 1) a independência entre as instâncias penal e administrativa, o que permite a instauração de processo disciplinar antes de finalizado o processo penal em que apurados os mesmos fatos; e 2) a inadequação da via eleita, haja vista a jurisprudência do STF no sentido de que não cabe reclamação que tenha por objeto ato anterior ao paradigma vinculante de controle (in casu, a decisão do Senado data do dia 12/7/2012, ao passo que o RHC 135.683 foi julgado em 15/10/2016 e publicado em 3/4/2017).

Tal decisão monocrática foi referendada pela 2ª Turma. Com ela, permitiu-se que o ex-senador voltasse a ter capacidade eleitoral passiva. Entretanto, no caso concreto, o reclamante não chegou a se candidatar nas eleições de 2018.

Eis que, passados cinco anos, no último dia 4 de setembro, o relator, ministro Dias Toffoli, extinguiu a Rcl 29.870, com fundamento na suposta perda superveniente de objeto, argumentando ter havido o encerramento do prazo de inelegibilidade decorrente da Resolução 20/2012 do Senado, publicada no Diário Oficial de 12/7/2012.

Aqui finalmente se chega à questão controvertida: como se deve contar o prazo legal do art. 1º, inciso I, alínea b, da LC 64/1990, com redação dada pela LC 81/1994?

Na decisão em comento, a fundamentação do exaurimento do prazo de inelegibilidade foi a seguinte: “(….) O reclamante foi eleito, em 2010, para o mandato de Senador, com início em 2011 e término em 2019. Por sua vez, a cassação ocorreu na legislatura do Congresso Nacional iniciada em 1º/2/11 e encerrada em 31/1/15. Portando, contado o prazo de inelegibilidade de 8 anos, nos termos do art. 1º, I, b, da LC nº 64/90, a partir do término da legislatura, verifica-se que a inelegibilidade encerrou-se em 31/1/23(página 9).

Como se vê, o ministro Toffoli procedeu à contagem do prazo legal considerando apenas a legislatura em que ocorreu a cassação (2011 a 2015), e não propriamente a totalidade do período remanescente do mandato de duas legislaturas para o qual o senador foi eleito (2011 a 2019), como determina a interpretação literal do dispositivo legal.

Convém ler novamente o texto do referido art. 1º, inciso I, alínea b, da LC 64/1990: “São inelegíveis para qualquer cargo os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais, que hajam perdido os respectivos mandatos por infringência do disposto nos incisos I e II do art. 55 da Constituição Federal, dos dispositivos equivalentes sobre perda de mandato das Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subsequentes ao término da legislatura”.

A técnica legislativa utilizada para a contagem dos prazos de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa realmente é sofrível. O dispositivo em comento é mais um caso. Na prática, restou estabelecido um prazo de inelegibilidade composto por duas fases: 1ª fase, o período remanescente do mandato para o qual o parlamentar cassado foi eleito; e 2ª fase, o período dos oito anos subsequentes ao fim desse mandato.

Dessa forma, a 1ª fase do prazo varia conforme se trate de deputado federal, estatual, distrital ou vereador, cujo mandato é de 4 anos, ou de senador, cujo mandato é de 8 anos, conforme o art. 46, § 1º, da CF.

A expressão legal “término da legislatura” que dá início à contagem dos oito anos (2ª fase do prazo) deve ser identificada como o fim do mandato para o qual o parlamentar cassado foi eleito (1ª fase do prazo).

Mesmo vislumbrando mais de uma interpretação possível para o enunciado em questão, dogmáticos (como José Jairo Gomes e Edson de Resende Castro) se inclinam para que a norma dele derivada, em se tratando de senadores, abarque sempre o período da segunda legislatura, ainda que eventualmente a cassação tenha ocorrido durante a primeira legislatura, como no caso concreto do ex-senador Demóstenes Torres.

No entanto, como se acaba de ver, o ministro Toffoli achou por bem unificar a contagem do prazo em se tratando de senador, apresentando para sua interpretação judicial o argumento do princípio da isonomia em relação aos demais membros do Poder Legislativo federal, distrital e municipal, bem como o julgamento da ADI 4.089.

Ocorre que, a rigor, não foi essa a questão posta nessa ação ajuizada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), nem tal nova interpretação se sagrou vitoriosa na referida ADI. A pretensão do autor da ação se limitava ao pedido de que a contagem do prazo de oito anos do referido dispositivo legal tivesse início na data da perda do mandato do parlamentar para que assim houvesse isonomia com o tratamento dado ao presidente da República na hipótese de impeachment, nos termos do art. 52, parágrafo único, da CF.

No entanto, tal pedido não foi acolhido. A ADI 4.089 foi julgada improcedente, nos termos do voto do relator, ministro Edson Fachin, vencido o ministro Gilmar Mendes, cujo voto-vogal cogitou da nova interpretação do dispositivo legal em comento, mas não foi acolhida.

Muito resumidamente, em seu voto-vogal, o ministro Gilmar Mendes entendeu que a forma de contagem do prazo do art. 1º, inciso I, alínea b, da LC 64/1990, com redação dada pela LC 81/1994, em duas etapas (tal como explicado acima) implicaria excesso do legislador e violação ao princípio da proporcionalidade, sobretudo na hipótese de um senador cassado no primeiro ano de mandato, cuja inelegibilidade poderá totalizar mais de 15 anos.

Como já dito, o ministro Gilmar ficou vencido, e o art. 1º, inciso I, alínea b, da LC 64/1990, com redação dada pela LC 81/1994, foi mantido hígido por ocasião do julgamento da ADI 4.089.

Com isso, a rigor, no caso do ex-senador Demóstenes, a primeira fase do prazo de inelegibilidade vai até 2019, que corresponde ao final do mandato de oito anos para o qual fora eleito, abarcando duas legislaturas. Só a partir daí teria início a contagem da segunda fase do prazo, os oito anos subsequentes, de forma que sua inelegibilidade acabaria só em 31/1/2027.

Daí que, sob o pretexto de julgar extinta a Rcl 29.870 por suposta perda superveniente de objeto, a decisão acabou veiculando nova interpretação do art. 1º, inciso I, alínea b, da LC 64/1990, com redação dada pela LC 81/1994, para unificar o prazo de inelegibilidade dos senadores com o dos demais parlamentares, contrariando a literalidade do texto legal.

Ocorre que isso não é cabível em sede de reclamação, que, pela própria jurisprudência do STF, é ação vocacionada para a tutela específica da competência e autoridade das decisões proferidas pelo STF, de modo que não materializa ação direta para o controle de constitucionalidade de leis, nem pode funcionar como veículo para consubstanciar (nova) interpretação conforme das normas infraconstitucionais.

Mantida ou não essa decisão, o fato é que a Rcl 29.870 já entra para a coleção dos casos polêmicos envolvendo parlamentares, em que o STF subverte a lógica de total independência da cassação do mandato em relação a outras instâncias e ignora a literalidade do dispositivo legal (já declarado constitucional na ADI 4.089) sobre a contagem do prazo de inelegibilidade de membros do Poder Legislativo nessa hipótese.

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