A regulação para a inovação

A recente aprovação do arcabouço fiscal pela Câmara de Deputados incluiu a área de ciência, tecnologia e inovação (CT&I). O texto, que limita gastos governamentais, foi recebido com desânimo por parte da comunidade científica e de outros representantes da área de CT&I no país pois, quando de sua votação no Senado, investimentos nesse campo haviam sido poupados.

Há três anos, publicamos neste JOTA um texto em que discutíamos um cenário desanimador, revelado pelos indicadores da Pintec (a pesquisa de inovação realizada pelo IBGE). O levantamento apontava uma queda no percentual de empresas inovadoras no Brasil. De lá para cá, apesar disso, o papel crucial da CT&I para desenvolver soluções para a mais grave tragédia sanitária do século – a pandemia da Covid-19 – foi explicitado e reconhecido.

As vacinas são o exemplo mais marcante desses esforços, evidenciando a imprescindibilidade da pesquisa e desenvolvimento (P&D). Para além das vacinas, a pandemia desvelou, ainda, a necessidade do desenvolvimento inovador de diferentes insumos e equipamentos de saúde, aparato também fundamental no combate ao vírus. O caso da empresa Magnamed conecta o contexto do ano de 2020 com a atualidade.

A empresa é fabricante de ventiladores pulmonares e atendeu, em regime de urgência, à demanda do Ministério da Saúde para fornecer os equipamentos para a expansão das unidades hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS). A resposta da empresa – em conjunto com a atuação de outras firmas, engenheiros e pesquisadores vinculados às universidades para atender a necessidade do SUS – traduziu uma articulação exemplar de atores e instituições do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI).[1]

Mas a trajetória da Magnamed inicia-se bem antes da pandemia. A fabricante de ventiladores pulmonares foi constituída, ainda no final da década de 1990, por profissionais egressos de universidades públicas. A empresa obteve apoio estatal para alavancar o seu negócio e depois para desenvolver seu protótipo de ventilador pulmonar. Contou, nisso, com apoio do Programa PIPE da Fapesp e recebeu, ademais, investimento por meio de participação acionária do fundo Criatec, do BNDES.

Há poucos meses, em junho, a Magnamed obteve aprovação das autoridades regulatórias dos Estados Unidos para produção dos ventiladores pulmonares na Flórida. O processo de certificação nos EUA foi longo e custoso e a empresa é a “primeira fabricante brasileira de ventiladores pulmonares no mercado norte-americano”. Os investimentos somente no processo de certificação, incluindo gastos com a criação de laboratórios, protótipos, consultoria e viagens, somaram mais de R$ 1 milhão.

Nem todas as empresas e/ou empreendimentos que recebem apoio estatal atingem resultados como os da Magnamed. Isso não é um problema, muito menos um problema do sistema brasileiro de CT&I. Muitas vacinas, aliás, não atingiram os resultados de eficácia esperados, ficando pelo caminho durante o processo de pesquisa e desenvolvimento. Isso porque na tomada de decisão por investir em P&D, seja pelo Estado ou pelo investidor de capital privado, há variáveis que não podem ser conhecidas de antemão, impedindo o cálculo preciso e a garantia de viabilidade econômica. Dito de outra forma, a política pública que aloca recursos para ciência, tecnologia e inovação é intrinsecamente ameaçada por diversos riscos.

Há no processo inovativo uma incontornável incerteza, tecnológica e de mercado, que são maiores nas etapas iniciais de desenvolvimento. É isso que, por um lado, faz com que o apoio público à ciência, tecnologia e inovação seja amplamente difundido nos países mais bem sucedidos. Por outro, o Estado corre o risco porque as inovações são intensivas em externalidades, benefícios econômicos e sociais que não são internalizáveis nas receitas de uma empresa ou de um projeto, casos dos benefícios das vacinas e dos ventiladores mecânicos durante a pandemia.

O direito tem criado e viabilizado instrumentos diversos para botar em prática o apoio estatal à inovação. No Brasil, na última década, diferentes leis e regulamentos foram alterados para criação ou aperfeiçoamento de instrumentos de política pública para incentivar a inovação nas empresas. Sob a influência do direito europeu, incorporamos uma série de mecanismos de compras públicas para inovação, como são as encomendas tecnológicas, o tipo de contrato utilizado para compra da vacina do laboratório AstraZeneca pela BioManguinhos/Fiocruz.

Para além das compras públicas, há mecanismos de estímulo da inovação, por meio de incentivos fiscais, acordos e alianças envolvendo universidades, empresas e outras instituições de CT&I, subvenção às atividades de P&D, investimento por meio de participação societária em empresas potencialmente inovadoras, entre outros.[2] O direito da inovação também incorporou a possibilidade de experimentação em política pública, por meio dos chamados sandboxes regulatórios, ambientes nos quais modelos e regimes jurídicos são experimentados com o fim de permitir o desenvolvimento de modelos de negócio inovadores, teste de protótipos e outras técnicas e tecnologias em fase experimental.[3]

Os sandboxes regulatórios vêm sendo adotados por distintas esferas da administração pública brasileira.[4] Agências reguladoras, autarquias, empresas públicas, municípios e outros entes públicos veem com entusiasmo o ambiente regulatório de experimentação, que possibilita explorar, com margem de ajustes e incorporação de aprendizado, soluções inovadoras por meio da interação público-privada. A ideia de criar “laboratórios” de testes de normas de regulação voltada à inovação, no entanto, não é nova. Já se disse que as tecnologias e as inovações avançam em ritmo cada vez mais acelerado, e que nessa dinâmica de gato-e-rato, a regulação tende a vir a reboque, como solução concebida a posteriori.

Menos se discute, porém, o fato importante de que é a regulação (com seu arcabouço jurídico), em seu papel constitutivo das instituições – entre as quais o próprio mercado –, que fornece as condições para que o processo inovativo se desenvolva, dando propósito ao crescimento econômico em sua missão de indutor do desenvolvimento científico e tecnológico.[5] A regulação, em certo sentido, preexiste à inovação, além de voltar, em seguida, para discipliná-la e catalisá-la, ajudando a fomentar as diversas externalidades que esse processo gera para sociedade. É um equívoco, portanto, a hipótese de que a regulação, por princípio, atrapalha ou compromete a inovação. Tudo depende de como se regula.

O caso da Magnamed joga luz importante sobre a relevância do arcabouço mais geral das políticas públicas de inovação, que requerem investimento público contínuo e dão suporte para que o processo inovativo ocorra nas empresas, bem como estimulam P&D em outras instituições científicas, tecnológicas e de inovação (ICTs). Não basta ter um conjunto de leis ou um punhado de políticas públicas para que se constituam e prosperem empresas inovadoras. Mas o direito tem função relevante ao operacionalizar os meios de atuação das políticas públicas.

A empresa valeu-se de diferentes instrumentos regulatórios de estímulo à inovação e aderiu a normas e arranjos jurídicos diversos no Brasil e no exterior em razão de sua expansão internacional. Houve, no caso, o mérito empreendedor de seus criadores, mas também foram chave as políticas de CT&I brasileiras e seu correspondente arcabouço jurídico regulatório.

[1] A esse propósito, vale lembrar, aliás, que a Constituição Federal determina que SNCTI deve ser organizado em regime de colaboração entre entes, tanto públicos quanto privados, com vistas a promover o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação (art. 219-B, após Emenda nº 85/2015).

[2] Esse é objeto de análise de projeto de pesquisa em desenvolvimento por Foss e Coutinho denominado “Incertezas jurídico-institucionais em atividades de inovação” com suporte da Fapesp (Processo 2019/16147-7).”

[3] Sobre o ambiente regulatório experimental, ver art. 2º, II da Lei Complementar 182/2021.

[4] O setor financeiro é marcadamente adepto desse modelo – ver, por exemplo, o sandbox da CVM. Observa-se, ainda, a difusão desse experimento regulatório em diferentes municípios do país (exemplos de Porto Alegre, Rio de Janeiro, e Niterói, etc.). Outros entes públicos também se voltam a esse modelo, como a Aneel, por meio do sandbox tarifário. Veja-se, ainda, a posição defendida pelo presidente da Embrapii em audiência na Câmara dos Deputados.

[5] Exemplos de regulação prévia que estimularam positivamente o comportamento de mercado são do Programa Brasileiro de Etiquetagem Veicular (PBE-V), vinculado ao Inovar-Auto, cujo escopo era apoiar o desenvolvimento tecnológico, a inovação, a segurança, a proteção ao meio-ambiente, a eficiência energética e a qualidade dos veículos automotores por meio de isenção tributária. O PBE-V era um dos requisitos para os fabricantes e montadoras que buscassem aderir ao Inovar-Auto, uma vez que que estimulava a criação de uma demanda no mercado consumidor por veículos mais eficientes. De forma geral, dados sugerem que a indústria automotiva buscou comercializar veículos com maior eficiência energética e que essa característica acabou influenciando adicionalmente na escolha do consumidor (veja aqui). Outro programa (regulado) que serve de exemplo foi o Procel de Economia de Energia, que informou o consumidor sobre a eficiência energética de eletrodomésticos (por exemplo, aparelhos de ar condicionado, geladeiras, entre outros).

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