A Portaria 848 e a renegociação de concessões rodoviárias federais em crise

Em 25 de agosto de 2023, o Ministério dos Transportes editou a Portaria 848, que estabelece procedimentos para a readaptação e otimização dos contratos de concessão de rodovias federais. A normativa pretende criar um ambiente mais propício à renegociação de contratos de concessão rodoviária em crise, com o objetivo de evitar o encerramento antecipado desses vínculos e retomar a sua viabilidade pela via negocial. 

A portaria, que segue a trilha da atuação administrativa dialógica[1], e busca superar a unilateralidade das decisões e substituí-las por soluções consensadas entre as partes, foi editada após o plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) sinalizar favoravelmente à possibilidade de desistência consensual dos processos de relicitação em trâmite para readaptação dos contratos, desde que uma série de condições fossem observadas pelos interessados[2]. Diante disso, o Ministério dos Transportes editou a portaria para instituir balizas à renegociação dos contratos de concessão rodoviária que se encontravam em processo de relicitação[3], incorporando as contribuições do TCU.

As iniciativas adotadas pelo governo federal de renegociar suas concessões rodoviárias se pautam no insucesso dos processos de relicitação dos ativos, que se mostraram excessivamente morosos e onerosos. Não obstante várias concessionárias tenham aderido à relicitação, nenhuma devolução amigável de projetos rodoviários federais foi materializada desde a edição da Lei 13.448/2017. Diante desse contexto, a repactuação dos vínculos foi vista pelo setor como uma interessante alternativa para o saneamento das concessões em crise. 

Para fomentar a readaptação dos contratos e evitar o agravamento da crise que pode colocar em risco a continuidade das operações, a norma infralegal disciplina os requisitos e o procedimento que conduzirão ao aditivo contratual. 

Nos termos da Portaria 848, para que se proceda à readaptação dos contratos de concessão de rodovias federais, as partes deverão elaborar estudos demonstrando a “vantajosidade” em se celebrar termo aditivo para adoção do mecanismo (art. 2º). A previsão parece alinhada à necessidade de fundamentação das decisões administrativas, assim como as agências reguladoras devem justificar uma opção regulatória em processos de análise de impacto, o poder concedente também precisa explicitar as razões que o conduziram à renegociação em detrimento da extinção, amigável ou não, do contrato.

O problema, porém, reside na numerosidade e no conteúdo das premissas e das condições que devem ser observadas pelas partes, que criam uma apertada moldura para a renegociação e podem desincentivar o uso da solução. Seja pela dificuldade e custo de transação para o atendimento de todas as exigências, seja pelo tempo necessário para percorrer todo o iter procedimental, que pode impor o agravamento da crise, tornando-a insuperável.

Para se ter um exemplo, dentre as 12 premissas que devem ser observadas nos estudos que subsidiarão a readaptação contratual, o art. 3º da portaria estabelece a necessidade de “renúncia de todos os processos judiciais, administrativos e arbitrais existentes”. Embora o propósito do inciso seja de obter plena regularização contratual, com a extinção de todas as pendências, parece problemático exigir uma abdicação irrestrita das partes a todas as suas pretensões sem qualquer espécie de ressalva. Determinados temas podem ser objeto de acirrada controvérsia entre poder concedente e concessionária e apresentarem uma grande repercussão financeira, o que pode dificultar ou impedir o desfecho da renegociação.

Outros pontos problemáticos se encontram em dificuldades práticas que podem ser geradas por premissas como a necessidade de “início imediato de execução de obras, preferencialmente de ampliação de capacidade” (inciso III), de “antecipação do cronograma de execução de obras” (inciso IV) e de “tarifa de pedágio menor que as previstas nos estudos em andamento ou da média dos estudos em andamento já levados à audiência pública” (inciso VII).

Diversos questionamentos podem ser realizados sobre as referidas premissas isoladamente[4], entretanto, chama atenção o desafio de como conciliá-las: o início imediato de determinadas obras e/ou a antecipação do cronograma de investimentos acarreta impactos consideráveis sobre o fluxo de caixa, o que pode demandar incrementos tarifários de curto prazo, ainda que provisórios, para assegurar a financiabilidade dessas alterações. A conciliação das premissas certamente será um desafio às futuras renegociações.

Ademais, não bastassem as doze premissas que devem ser observadas nos estudos que subsidiam a proposta de readaptação contratual, a Portaria 848 estabelece, ainda, a necessidade de os estudos contemplarem outros dez elementos para que sua admissibilidade seja reconhecida pelo Ministério dos Transportes. Trata-se de lista de elementos cuja extensão e conteúdo são bastante similares às exigências aplicáveis aos estudos técnicos que subsidiam os processos de relicitação constantes do art. 17, § 1º, da Lei 13.448/2017.

Os estudos devem conter um rol amplo e nada trivial de informações, como o cronograma de investimentos do período e suas respectivas diretrizes ambientais, as estimativas de demanda, a modelagem econômico-financeira e considerações sobre as principais questões jurídicas e regulatórias existentes. Esses e outros dados serão avaliados, inicialmente, pelo Ministério dos Transportes – com subsídios da Infra S.A. – e serão remetidos à análise da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que identificará a “vantajosidade” técnica e jurídica da proposta de readaptação contratual.

Na análise a ser realizada pela ANTT, a portaria novamente estabelece requisitos que devem estar presentes. Entre eles, a agência deverá verificar se a proposta de adaptação contratual mantém “a natureza do objeto contratual, o equilíbrio econômico-financeiro e os princípios norteadores que fundamentaram a matriz de risco contratual original” (art. 11, § 2º). Parece legítima a previsão da portaria de impossibilitar a desnaturação do objeto contratual, afinal, não há como se alterar o contrato de concessão para se imputar ao parceiro privado a gestão de um ativo que não tenha sido o objeto do certame licitatório que precedeu o contrato.

No entanto, a necessidade de preservação de determinadas condições originais do contrato deve ser interpretada de forma a tornar possível a adaptação. A renegociação pode trazer modificações sobre as condições do contrato, com a concepção de um equilíbrio distinto da equação original. Nesse sentido, a interpretação mais adequada do dispositivo implica permitir a realização de alterações no equilíbrio contratual ou na matriz de risco de origem para alinhamento do contrato às novas circunstâncias, desde que um núcleo essencial de elementos, como os “princípios norteadores” da matriz, a ser identificado concretamente, caso a caso, seja respeitado.

Após os estudos de “vantajosidade” da ANTT, a portaria prevê que o processo será remetido para a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos do TCU (art. 12). Apenas com o aval do órgão de controle, poderá ser providenciada a assinatura do Termo Aditivo.

A edição da Portaria 848 pelo Ministério dos Transportes caminha em um importante sentido de reconhecer a renegociação contratual como um mecanismo legítimo para saneamento de concessões em crise. A falta de um regramento claro do ordenamento jurídico sobre as hipóteses e os limites à mutabilidade do contrato pode trazer insegurança às partes interessadas em adotá-la e dificuldades para que os órgãos controladores aceitem a solução consensada, diante das fortes amarras da legalidade estrita, tão arraigadas em nossa cultura jurídica[5]. Porém, a criação de balizas restritas e rígidas, com uma série de premissas e requisitos formais e materiais a serem observados, pode criar empecilhos à efetividade do mecanismo. Dessa forma, a portaria merece ser interpretada como um conjunto de diretrizes que orientarão a readaptação contratual pelas partes, que podem ser ajustadas à luz das particularidades de cada caso[6].

A disciplina apresentada pela portaria contribui para o avanço da consensualidade, voltada à resolução de graves problemas contratuais, que podem culminar no desatendimento do usuário. Porém, a efetividade da solução consensual dependerá de uma construção negocial e dialógica, em um processo em que as partes estejam dispostas a ponderar argumentos, rever posições e realizar concessões recíprocas.

[1] As alterações introduzidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro pela Lei 13.655/2018, em especial a nova redação do seu art. 26, representam um marco de inovação em termos de adoção da consensualidade, já que trazem um permissivo genérico para que a Administração Pública possa, independentemente de lei específica, celebrar compromissos para resolver conflitos.

[2] O entendimento foi proferido pelo Plenário no Acórdão 1.593/2023, de Relatoria do Ministro Vital do Rêgo, no Processo 008.877/2023-8, após consulta formulada pelo Ministério dos Transportes e pelo Ministério de Portos e Aeroportos sobre o tema.

[3] Há, ao menos, três contratos de concessão rodoviária em âmbito federal que se encontram em processo de relicitação sob avaliação no TCU: (i) a concessão da BR-040/DF/GO/MG, no trecho entre Brasília e Juiz de Fora; (ii) a concessão da rodovia BR-163/MS; e (iii) a concessão das rodovias BR-060/153/262/DF/GO/MG.

[4] A título exemplificativo, há questionamentos básicos sobre as premissas que não são respondidos pela portaria: como antecipar o cronograma de execução de obras em contratos em que os investimentos já se encontram em atraso? Ou ainda, como identificar o valor das tarifas de estudos para a relicitação de um ativo que ainda não foram concluídos?

[5] Apesar da tendência, a jurisprudência dos órgãos de controle tem caminhado em direção ao reconhecimento da natural mutabilidade dos contratos de concessão. Em acórdão recente, resultante do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.048, o Supremo Tribunal Federal validou a prorrogação antecipada de contratos de concessão de transporte de São Paulo, reconhecendo a possibilidade de alteração contratual para adequação às necessidades econômicas e sociais decorrentes da dinâmica do serviço público.

[6] O arranjo da Portaria 848 parece ter se inspirado na experiência mais recente de renegociação contratual conduzida pela ANTT, referente à concessão da BR-163/MT, que adotou várias das premissas incorporadas na normativa. A referida renegociação envolveu adaptações sobre o contrato e a resolução de todo o passivo regulatório, com transferência do controle acionário da concessionária – Rota do Oeste – à MT PAR, empresa estatal sob controle acionário do Estado do Mato Grosso. Na oportunidade, houve renúncia da concessionária a todos os pedidos formulados em âmbito judicial, administrativo e arbitral, a extensão do prazo de vigência contratual e a reprogramação do cronograma de investimentos do contrato. No entanto, embora o caso seja uma interessante referência para renegociação de concessões em crise, deve-se ter cautela para que particularidades de um determinado caso concreto não sejam transpostas como regras universais a serem rigidamente observadas em futuras renegociações. No caso da BR-163/MT, a operação ocorreu em circunstâncias bastante específicas: o Estado do Mato Grosso manifestou interesse em adquirir o controle acionário da concessionária Rota do Oeste após diversas tentativas frustradas de transferir o ativo para potenciais investidores no mercado

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