Superendividamento, rotativo e parcelamento sem juros no cartão

O superendividamento é um problema crônico que assola milhões de brasileiros. Há anos o governo federal tenta resolver o assunto, tendo lançado, recentemente, o Desenrola, que busca melhorar as condições para a renegociação de dívidas vencidas de consumidores negativados e com restrições de crédito[1].

Entre os vilões apontados está o rotativo no cartão de crédito. Trata-se da possibilidade de pagamento parcelado da fatura, serviço que os bancos emissores dos cartões oferecem aos seus clientes mediante juros – os temidos “juros do rotativo”, hoje em torno de 445,70% ao ano .

Segundo a ABECS, o rotativo representava apenas 2,8% da carteira de dívidas das famílias em abril de 2022, percentual baixo inclusive quando comparado ao crédito imobiliário (39,6%) e ao consignado (25,1%). Mas é possível que esses dados sejam hoje mais significativos.

Recente pesquisa da CNC aponta que 86,8% dos consumidores endividados têm dívidas no cartão de crédito. Segundo o IPEA, a fragilidade financeira das famílias “decorre de um quadro de maior endividamento em linhas que têm taxas de juros mais elevadas (…), por meio do uso do cartão de crédito rotativo e parcelado e do cheque especial” (grifamos). Em abril de 2023, cerca de 28% da renda das famílias brasileiras estava comprometida com juros e amortização.

Em audiência no Senado em agosto, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, informou que o regulador estuda formas de disciplinar o rotativo, havendo a possibilidade de sua extinção ou da criação de “algum tipo de tarifa para desincentivar o parcelamento sem juros”. Segundo ele, essa modalidade de pagamento, amplamente difundida no varejo brasileiro, levaria ao endividamento.

Após reações de diversos setores, Campos Neto esclareceu que o parcelado sem juros não sofreria “nenhuma ruptura”. Possíveis soluções para o problema seguem sendo discutidas no âmbito de Grupo de Trabalho criado em abril entre o Ministério da Fazenda, o Banco Central e a Febraban.

A Febraban afirma que os juros do rotativo são altos dada a elevada taxa de inadimplência no cartão de crédito, que resultaria da prática do consumidor de parcelar as compras sem juros a perder de vista. Argumenta-se que o fim do rotativo sem endereçar o parcelamento sem juros no varejo poderia desequilibrar o sistema, já que o risco de inadimplemento ficaria sem adequada remuneração, tornando-se insustentável.

O tema tem gerado aquecido debate na mídia. Propostas veiculadas pelos bancos incluem desde a vedação completa ao parcelamento sem juros, mantida a opção com juros (tabelados ou não), até a vinculação da modalidade sem juros a certos tipos de bens de consumo (duráveis, semiduráveis ou não duráveis), com limitação do prazo a ser parcelado.

As investidas contra o parcelamento sem juros não são de hoje. Em 2018, a ABECS propôs um novo “crediário”, que reduziria o volume de operações parceladas no cartão de crédito e, assim, os prazos de liquidação dessa forma de pagamento. Nesse regime, os comerciantes receberiam os valores em cinco dias (D+5) da compra, ou em outro prazo padrão a ser ajustado pelo setor[2]. Em contrapartida, os bancos emissores dos cartões cobrariam dos consumidores, seus correntistas, juros sobre o valor da transação parcelada. Os juros seriam definidos conforme a quantidade de parcelas e o score da pessoa no cadastro positivo (bons pagadores pagariam menos juros).

A medida seria benéfica ao consumidor, garantindo mais transparência sobre os juros aplicados que, na prática, estariam embutidos no valor de todos os produtos, comercializados à vista ou a prazo, tornando-os mais caros para todos, independentemente da forma de pagamento. Por sua vez, os estabelecimentos não precisariam antecipar seus recebíveis junto às credenciadoras[3].

A proposta não teve receptividade à época, tendo sido rejeitada por diversos setores. Para além de interferir em hábitos adquiridos dos consumidores, aventou-se que poderia limitar a concorrência no mercado de crédito para pessoas jurídicas. Ao risco de exclusão das credenciadoras da oferta de crédito para micro e pequenas empresas e microempreendedores individuais, somava-se a preocupação com a potencial uniformização dos prazos de pagamento, importante variável competitiva do setor[4].

Diante disso, não houve adesão do mercado e a proposta não foi encampada pelo Banco Central, o que tende a se repetir hoje.

Atualmente, o varejo continua sendo predominantemente contrário à limitação ao parcelamento sem juros. A Fecomercio/SP, por exemplo, defende um teto para os juros do rotativo, mas refuta a correlação com o parcelamento sem juros, que careceria de “precisão analítica”. Da mesma forma, as adquirentes (credenciadoras) independentes têm engrossado o coro contrário à eliminação ou limitação ao parcelamento sem juros[5].

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, expressou  preocupação relativa aos juros do rotativo, mas destacou que “o fim da parcela sem juros não resolve” o assunto, reconhecendo que tal forma de pagamento é o “padrão de compra brasileiro”. O governo obteve importante vitória na Câmara dos Deputados com a inclusão da limitação dos juros a 100% ao ano no âmbito do Desenrola (rotativo e parcelamento com juros). O PL 2685/2022, de autoria do deputado Elmar Nascimento (União Brasil-BA), depende de aprovação pelo Senado, mas há otimismo quanto a sua aprovação. É difícil prever, no entanto, os efeitos colaterais ou sistêmicos dessa medida.

A fixação artificial de juros máximos pode causar um desalinhamento entre demanda e oferta, com impactos para além dos mercados de crédito e de pagamentos. Apesar da gravidade do superendividamento, é importante que iniciativas voltadas para seu combate tenham em conta que uma parcela dos brasileiros usa o cartão de crédito para complementação de renda, ou seja, para financiar necessidades básicas, como alimentação, moradia e saúde. Estudo da FGV-EAESP (maio/2023) aponta que, nos últimos anos, “o crédito ao consumo se expandiu provavelmente como forma de mitigar os efeitos negativos da estagnação de renda e do aumento da informalidade. Ou seja, o crédito é utilizado como complemento de renda.

Ademais, a fixação de tetos de preços pode ser ineficaz[6], particularmente em setores com atuação de conglomerados, permitindo subsídios cruzados ou medidas de compensação entre produtos e serviços.

Em qualquer hipótese (lei, regulação, autorregulação), é fundamental preservar a concorrência, inserida após longo processo na indústria de pagamentos, ao lado da preocupação com a higidez do sistema.

Nessa linha, propostas que abarcam dois pilares parecem ser as mais promissoras. O primeiro é a transparência (informação mais clara ao consumidor). O segundo, baseado essencialmente no fomento à concorrência, envolve a portabilidade das dívidas do rotativo para instituições financeiras ou de pagamento que ofereçam preços (juros) menores. O avanço do open finance[7] viabiliza essa medida.

Em uma economia saudável e competitiva, a própria indústria deve ser capaz de superar o problema, prescindindo da manutenção de tetos. Os emissores de cartões reúnem todas as condições (dados, inteligência de mercado) para diferenciar de forma mais eficiente os perfis de crédito dos clientes e oferecer produtos mais adequados à capacidade e situação do consumidor.

O cadastro positivo, impulsionado em 2019, e a presença de empresas independentes no mercado de serviços de proteção ao crédito – sempre a concorrência! – contribuem para diminuir a assimetria informacional que impacta negativamente as taxas de juros.

Tudo isso colabora para o aumento da competitividade no mercado, reduzindo a inadimplência e a exposição dos agentes, sem comprometer a oferta de crédito no país e penalizar uma população que se vê mergulhada em dívidas para garantir o básico.

[1] Em entrevista à jornalista Natuza Nery, Lauro Gonzalez, professor e coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira na FGV-SP, avalia que o Desenrola pode se mostrar uma solução paliativa (“enxugar gelo”) caso os problemas estruturais que levam ao endividamento não sejam frontalmente endereçados.

[2] O sistema de pagamentos com cartão de crédito envolve diversos agentes. Bancos ou fintechs são os responsáveis pela emissão dos cartões, vinculados a uma bandeira, entidade que institui e organiza o arranjo de pagamento (conjunto de regras aplicáveis ao cartão). Em paralelo, para receber pagamentos por meio de cartões, os estabelecimentos comerciais se habilitam junto às credenciadoras ou adquirentes, que disponibilizam as “maquininhas”. Quando ocorre pagamento com cartão, a credenciadora informa a transação à bandeira que, por sua vez, encaminha solicitação ao emissor. O emissor é responsável pela aprovação ou não da transação, de acordo com o saldo ou limite de crédito do consumidor. Os valores objeto das transações são usualmente recebidos pelo estabelecimento no prazo de 30 dias da compra (D+30), podendo se alongar por mais tempo na hipótese de parcelamento, o que ocorre a critério do próprio estabelecimento (D+30 para a 1ª parcela, D+60 para a 2ª, e assim por diante). O comerciante pode aguardar para receber os valores conforme esse cronograma, ou antecipar seus recebíveis, tomando crédito junto às credenciadoras.

[3] Vide nota 2. Via de regra, a antecipação de recebíveis representa uma importante fonte de receitas para as credenciadoras.

[4] O Processo Administrativo 08700.002066/2019-77, pendente de julgamento no Cade, é ilustrativo de como o prazo de antecipação de recebíveis pode ser estratégico na competição no mercado de credenciamento. Em 2018, a credenciadora Rede passou a ofertar prazo D+2, a custo zero, para liquidação de pagamentos realizados por cartão de crédito, beneficiando inicialmente estabelecimentos comerciais com domicílio bancário no Itaú, banco integrante do mesmo grupo econômico da Rede. A essa iniciativa seguiu-se acirrada disputa das adquirentes pelos estabelecimentos comerciais, com redução sensível dos prazos praticados sem a cobrança de taxa (juros), conforme amplamente documentado nos autos do referido processo. É importante notar que, em 2018, o mercado de credenciamento no Brasil já se encontrava em estágio promissor do ponto de vista concorrencial, com a entrada e participação de diversas empresas não atreladas a bancos tradicionais.

[5] A Stone, por exemplo, defendeu que as tarifas de intercâmbio, pagas pelas credenciadoras aos emissores dos cartões, já cumprem o papel de equilibrar os riscos do sistema. Da mesma forma, o Pagbank apontou que “não vê correlação entre os altos juros praticados na modalidade [do rotativo] e o parcelado sem juros” e que “o maior risco de crédito está relacionado à renda do cliente, à capacidade de pagamento, e não à modalidade de pagamento que ele usa”.

[6] A edição 9 da Carta Propague, que trata de regulação de tarifas em mercado de cartões, esclarece que a “fuga do teto” ou “fuga regulatória”, por quaisquer mecanismos de compensação de renda, configura uma das principais preocupações dos reguladores nos países que optaram por limites tarifários.

[7] Na 2ª edição do evento “Concorrência no Mercado Financeiro: Desafios da Nova Economia Digital”, realizado pela Abipag em 31/8/2023, em Brasília, diversos interlocutores da indústria e do próprio Banco Central defenderam a portabilidade das dívidas de cartão de crédito antes mesmo do ingresso no rotativo. Somando-se a isso necessária educação financeira aos consumidores e maior transparência quanto ao preço final a ser pago. Nesse sentido, destacamos a fala de Renato Gomes, diretor de Organização do Sistema Financeiro e de Resolução do Banco Central, que utilizou a expressão “falta de saliência” ao se referir ao preço do rotativo.

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