Reclamação constitucional: STF vs. Justiça do Trabalho?

O art. 926 do CPC/15 trouxe o dever de os tribunais uniformizarem as respectivas jurisprudências, bem como de as manterem estáveis, devendo, ainda, observar os precedentes obrigatórios, previstos ao art. 927 do CPC/15.

Ocorre que ainda há uma incompreensível resistência à aplicação dos precedentes vinculantes por alguns juízes e tribunais, o que prejudica sensivelmente a eficácia da uniformização e estabilização da jurisprudência e da redução da incerteza da resposta judicial – e dos custos de transação consequentes – objetivada pela nova sistemática de precedentes brasileira.

Existem razões de eficiência da política pública judiciária para o respeito a precedentes. O Brasil já é campeão mundial de processos e seu poder judiciário um dos mais caros do mundo, justamente para subsidiar esse gigantismo indesejável de processos.

Quando o juiz deixa de seguir um precedente vinculante, ele está encarecendo a máquina judiciária e onerando um contribuinte que já está de “cuecas” (nas palavras de Becker).

Nesse sentido, surgiu um recente movimento de ajuizamento de reclamações constitucionais junto ao STF para que este casse decisões que ignoram precedentes da Corte Constitucional.

Nos termos do art. 988 do CPC/15 e em consonância à jurisprudência consolidada do STF[1], a reclamação constitucional é cabível para: (i) preservar a competência do STF; (ii) garantir a autoridade de suas decisões; e (iii) garantir a observância de enunciado de Súmula Vinculante e de decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade.

O STF tem respondido de forma positiva às reclamações, cassando as decisões que ignoram a sistemática de precedentes obrigatórios vigentes no país e, talvez em razão do seu viés ativista, a Justiça do Trabalho parece ser o foco desse movimento.

À título de exemplo, conforme jurisprudência vinculante do STF, como o contrato de trabalho não é a única forma de prestação de serviços e são lícitas outras formas de organização, a competência originária, derivada do princípio do juiz natural, para conhecer de contrato celebrado licitamente (a priori) sob outro regime legal deve ser definida pela roupagem inicial da relação, mesmo diante de alegada fraude trabalhista, vg. a ADPF 324, da ADC 48, da ADI 3.961, da ADI 5.625 e Tema 725 da Repercussão Geral.

O desrespeito dessa ordem cronológica e originária da competência, como tem se verificado na Justiça do Trabalho, gera um efeito pernicioso de incentivo ao comportamento oportunista não cooperativo e pode gerar um efeito cascata de captura individual de benefícios indevidos e socialização do custo da conduta oportunista, assim, essa atuação corporativista da Justiça do Trabalho agrava o problema do excesso de litigância no Brasil e é péssima do ponto de vista da segurança jurídica e da eficiência na administração da justiça.

É aí que entram as reclamações constitucionais. Ilustrativamente, a RCL 58.333/SP, envolvendo contrato de franquia conhecido originariamente pela Justiça do Trabalho e no qual houve a declaração de vínculo entre o corretor de seguros franqueado e a respectiva seguradora, o ministro André Mendonça, em decisão referendada pela 2ª Turma do STF, suspendeu decisão trabalhista por aparente inobservância dos precedentes vinculantes acerca da ordem de atribuição de competência e da possibilidade de outras formas de organização das relações.

A questão tem se estabilizado de tal forma que temos observado decisões monocráticas dos Ministros relatores das reclamações que, ao valerem-se do parágrafo único do art. 161 do Regimento Interno do Supremo, que dispõe que “o Relator poderá julgar a reclamação quando a matéria for objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal”, têm cassado decisões das cortes a quo sem sequer submetê-las às respectivas turmas.

É caso das RCLs 57.954/RJ, na qual o ministro relator, Alexandre de Moraes, cassou decisão que reconhece vínculo trabalhista entre franqueadora e franqueado; 61.440/MG, idem, apesar de se tratarem de outros reclamante e reclamado; e 61.437/MG, na qual a ministra relatora, Cármen Lúcia, cassou decisão da Justiça do Trabalho que conhecia de Contrato de Franquia e determinou o proferimento de outra decisão, “com observância ao decidido por este Supremo Tribunal”. Uma clara sinalização de que o STF não tolerará o desrespeito aos seus precedentes vinculantes.

Tal movimento parece ter a intenção de arrefecer o ativismo da Justiça do Trabalho que, por vezes, atropela os precedentes cuja observância é obrigatória. Todavia, recentemente, o ministro Luiz Fux – e até contra o que ensinam os manuais de Análise Econômica do Processo – destoou dos entendimentos que vinham sendo proferidos pela Corte Constitucional no âmbito das reclamações que tratam da matéria supramencionada e, no Agravo Regimental na RCL 56.098/RJ, decidiu pela negativa de seguimento de Reclamação Constitucional que visava a cassação de decisão que reconheceu vínculo entre uma consultoria imobiliária e um consultor, que haviam celebrado contrato de associação, porquanto “em nenhum momento se declarou, na origem, a ilicitude em tese de relação autônoma de prestação de serviços de corretagem de imóveis, tendo, antes, o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, afirmado a existência de vínculo empregatício na espécie com base em ampla análise do conjunto probatório”.

Neste contexto, não haveria “aderência estrita entre a decisão reclamada e os paradigmas, visto fundar-se o acórdão de origem em aspectos fáticos e não na ilicitude em tese da própria estruturação econômica da empresa reclamante.” e que “a revisão do entendimento firmado pelo tribunal de origem acerca da existência de subordinação no caso concreto, a ensejar o reconhecimento do vínculo empregatício entre as partes, demandaria amplo revolvimento do conjunto fático-probatório”, incabível em sede de reclamação.

Sujeitar a aplicação dos precedentes vinculantes à análise do caso concreto não parece ser a melhor solução sob o ponto de vista da análise econômica, estando longe de gerar eficiência na política pública judiciária. Além de não resolver a incerteza da resposta judicial – o que faz com que não sejam realinhados os incentivos à litigância e ao comportamento oportunista e não cooperativo – e de não dar a devida eficácia erga omnes aos precedentes vinculantes da Corte Suprema, do ponto de vista da eficiência na gestão e a administração judiciária, decisões casuísticas nas reclamações que objetivam a aplicação de precedentes vinculantes têm o condão de fomentar uma enxurrada de novas reclamações, e não estancar a sangria, além de estimular a litigância judicial em primeiro e segundo graus.

Sob um viés consequencialista, de economia processual, administração judiciária e desincentivo à litigância e ao comportamento oportunista, as reclamações judiciais acerca de vínculo de emprego devem ter uma solução que pacifica o tema de forma abrangente.

Assim, a melhor solução para as reclamações constitucionais acerca da matéria trabalhista, sob de incentivo ao cumprimento dos contratos, ao comportamento colaborativo, à não judicialização e da eficácia dos precedentes, é justamente a aplicar o entendimento firmado na ADC 48, para fins de submeter os processos que tratam do tema para a justiça comum – caso seja essa a justiça originariamente competente –, observando a ADC 48, retirando da Justiça do Trabalho a competência prima facie para conhecer e analisar os requisitos de existência, validade e eficácia de contratos comerciais.

Tal solução é salutar pois independe da análise das provas produzidas no caso concreto objeto da reclamação e deriva tão somente da avaliação acerca da observância da ordem de competência, assim, o provimento das reclamatórias trabalhistas deve ser para determinar a remessa ao juízo originariamente competente para que este juízo faça a análise inicial a respeito do caso individual e aferir se ele atende aos requisitos da legislação própria e, apenas nos casos de não preenchidos os requisitos próprios, pode-se atribuir competência à juízo diverso, como a Justiça do Trabalho, para analisar o preenchimento dos requisitos próprios de outras relações.

Parece ser essa a solução que está sendo construída no STF, vide RCL 59.795/MG, na qual o ministro Alexandre de Moraes cassou decisão do TRT3 que havia reconhecido o vínculo de emprego de um motorista com a plataforma Cabify e determinou a remessa do caso à Justiça Comum, uma solução que não alija a Justiça do Trabalho e também preserva a ordem constitucional brasileira.

Por fim, caso o Supremo sedimente este entendimento, o recado será uníssono: não respeitar a ordem de competência na análise dos contratos comerciais é incorrer em inconstitucionalidade, violação à atual sistemática de precedentes e fomentar a ineficiência perniciosa que assola as nossas estruturas judiciárias, e isso não será tolerado pela Corte Máxima do país.

[1] Rcl 38778 AgR, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 20/03/2020, DJe-078, divulgado em 30-03-2020, publicado em 31-03-2020;

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