No último mês de junho, a justiça da Guiné Equatorial congelou R$ 615 milhões de três empreiteiras brasileiras em atuação no país africano[1]. A razão, assumidamente política, foi imediatamente levada às redes sociais pelo vice-presidente do país, Teodorin Obiang: “Esperamos que a decisão seja uma lição para que, no futuro, saibam medir as consequências de seus atos”.
Por “atos”, Obiang se referia a uma operação da Polícia Federal, deflagrada em 2018 e ainda em curso, que o aponta como suspeito pelo crime de lavagem de dinheiro. Recursos que, no Brasil, teriam assumido formas nada discretas. Dentre elas, um apartamento de US$ 15 milhões em São Paulo, 20 relógios de luxo avaliados em US$ 15 milhões e US$ 1,4 milhão em espécie.
A “lição” de Obiang é uma retaliação antecipada. Filho e sucessor de Teodoro Obiang, que governa a Guiné Equatorial ininterruptamente desde 1979, ele já recebeu sanções e condenações por lavagem de dinheiro no Reino Unido, na França e nos Estados Unidos, em geral praticada sob o mesmo método: compra de imóveis vultosos, carros esportivos e joias caras. De preferência, no exterior.
Mas o que lavagem de dinheiro tem a ver com direitos humanos? O caso da Guiné Equatorial explica. Ditadura movida a petróleo, viu seu PIB saltar de US$ 2,7 bilhões a US$ 13 bilhões na década de 2000. Chegou a alcançar Espanha e Itália em renda per capita. Desde 2013, enfrenta forte recessão. Mas segue alvo da comunidade internacional por outras razões: má gestão de fundos públicos, repressão política, juízos sumários e até tortura de opositores.
Teodoro Obiang está entre os governantes mais ricos do mundo, segundo a Forbes, e 70% da população da Guiné Equatorial vive sob a linha da pobreza, com precário acesso a direitos básicos como saúde e educação, segundo a Human Rights Watch. Ligam-se os pontos e chega-se a uma tese conhecida, destacada na Agenda 2030 da ONU: numa ponta, corrupção de alto nível; noutra, desrespeito a direitos humanos. No meio, a lavagem de dinheiro.
A conexão entre esses fenômenos, no entanto, foi historicamente observada em termos de estrita correlação ou causalidade. A novidade é que uma nova geração de autores tem apostado numa revisão conceitual da corrupção como violação direta de direitos humanos, a ponto da ideia de um ambiente livre de corrupção ser entendida, em si mesma, como um legítimo direito humano.
É o que propõem, por exemplo, nomes como Anne Peters, jurista e diretora do Max Planck Institute, para quem não faltam leis anticorrupção, senão sua melhor aplicação, de preferência sob o chamado “human rights approach”[2]. Ou autores como Murray e Spalding, para quem a ideia de um ambiente livre de corrupção é um direito “autônomo”. As ideias detalhadas de Murray e Spalding já foram objeto de coluna no JOTA, em texto de Marcelo Zenkner.
As consequências dessa revisão conceitual são evidentes. Ela fortalece o combate à corrupção, constata a importância dos instrumentos de prevenção à lavagem de dinheiro e, por último, sugere uma observação crítica dos indicadores econômicos de regimes que desrespeitam os direitos humanos, a despeito de seu festejado crescimento – e da riqueza ostensiva de suas elites.
Em 2020, quando Teodorin foi condenado pela Justiça francesa por enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro – o que lhe rendeu o confisco de uma mansão de 101 quartos em Paris, avaliada em € 110 milhões –, as investigações revelaram que o Ministério das Finanças da Guiné Equatorial havia transferido, anos antes, mais de € 100 milhões a suas contas privadas.
De fato, o estilo de vida luxuoso de políticos de alto escalão desperta tanta desconfiança de desvio de dinheiro público que a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (UNCAC), ratificada pelo Brasil em 2006, qualifica como “delito” o incremento significativo de patrimônio de funcionário público, quando injustificado e incompatível com seus rendimentos legítimos[3].
Veja-se o apartamento de Teodorin Obiang: adquirido por US$ 15 milhões, chamou a atenção da Polícia Federal menos pelos seus dois andares, portas blindadas ou torneiras de ouro, e mais pelo prosaico capital social da empresa compradora, de apenas R$ 10 mil. Em 2020, Teodorin ganhava salário anual de US$ 75 mil como ministro, antes de assumir a vice-presidência. Bingo. Uma situação repleta de red flags para qualquer programa de compliance.
A Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (UNCAC) entende ainda o enriquecimento ilícito como “particularmente nocivo” não apenas para a democracia ou para o Estado de Direito, mas também para o bom desenvolvimento de economias socialmente responsáveis. O tratado reconhece, noutras palavras, o sentido da correia de transmissão que liga desvio de recursos públicos, enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro.
Há, no entanto, um problema: embora a assinatura de convenções internacionais de combate à corrupção e de prevenção à lavagem de dinheiro leve mais países a adotar legislações específicas, a aplicação efetiva dessas medidas ainda é deficiente. Um tratamento permissivo persiste, seja em países pobres, em desenvolvimento ou mesmo desenvolvidos.
Um bom exemplo é o escândalo do Riggs Bank, de Washington (EUA). Em 2004, um relatório do Senado americano apontou que Teodoro Obiang havia depositado cerca de US$ 700 milhões em 60 contas do Riggs Bank controladas por sua família. Em 2006, o patriarca da Guiné Equatorial comprou uma mansão de US$ 35 milhões na Califórnia. Método familiar.
Um laço nada fortuito dessa história reforça o vínculo entre programas de compliance e promoção de direitos humanos. O Riggs Bank é o mesmo que ajudou o ditador chileno Augusto Pinochet a abrir offshores de fachada para movimentar US$ 17 milhões desviados de fundos públicos de seu país.
No Chile, o processo contra Pinochet ficou conhecido como “Caso Riggs”. A justiça do país concluiu que o ditador cometeu crimes como fraude, enriquecimento ilícito, apropriação indevida de fundos públicos e falsificação de passaporte. O currículo de Pinochet, no entanto, é mais conhecido pelo seu envolvimento com o tráfico de armas e pelo saldo de sua ditadura, responsável pela morte de 40 mil pessoas e pelo desaparecimento de 3.000.
A corrupção de alto nível de Pinochet trouxe impactos negativos diretos para a economia do país, como têm demonstrado estudos recentes[4]. Em 1990, último ano de Pinochet, 40% da população chilena vivia sob a linha da pobreza. Durante muito tempo, no entanto, o relativo sucesso das reformas econômicas foi tratado de maneira independente dos malfeitos do autoritarismo. Uma provocação: a economia chilena teria crescido mais e de maneira mais sustentável com o devido respeito aos direitos humanos?
Os escândalos do Riggs Bank, no entanto, não vieram à tona por isso. Só foram descobertos após a edição do Ato Patriótico de 2001, nos EUA. No contexto dos ataques do 11 de Setembro, a lei americana havia ampliado a permissão para quebra de sigilo bancário, com intuito de investigar o financiamento de atos terroristas. Acertou, colateralmente, Obiang e Pinochet.
À época, o Riggs Bank foi obrigado a pagar US$ 16 milhões, uma multa inédita para um banco de seu porte, e sofreu penalidades do Departamento de Justiça dos EUA[5]. Recebeu ainda uma multa específica de US$ 25 milhões pelo descumprimento dos controles de prevenção à lavagem de dinheiro.
No entanto, multas de natureza tradicional, como sinal de desestímulo e reparação de danos ao sistema fiscal e financeiro, ainda não têm força suficiente para evitar a prática de lavagem de dinheiro, como se vê nas acusações em série contra Teodorin Obiang mundo afora, e agora no Brasil.
Entender o combate à corrupção – e a prevenção à lavagem de dinheiro – como promoção de direitos humanos traz outra perspectiva aos mecanismos de compliance. Em jogo, também está um ambiente saudável para o exercício da atividade privada alinhada a práticas socialmente responsáveis.
[1] “Brasil vira alvo de sanções da Guiné Equatorial após PF mirar filho de ditador”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/06/brasil-vira-alvo-de-sancoes-da-guine-equatorial-apos-pf-mirar-filho-de-ditador.shtml. Acesso em 10.07.2023.
[2] PETERS, Anne. “Corruption as a Violation of International Human Rights”. In The European Journal of International Law, vol. 29, n. 4. Oxford: Oxford University Press, 2018. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2805099#paper-citation-ns-widget. Acesso em 15.07.2023.
[3] ONU. Organização das Nações Unidas. Convenção das Nações Unidas contra a corrupção. 2003.
[4] FFRENCH-DAVIS, Ricardo. “Columna de Opinión: La Economía Chilena en Dictadura y en los Gobiernos Democráticos”. Departamento de Economia, Universidad de Chile, 4 de abril de 2019. Disponível em: https://econ.uchile.cl/es/noticia/columna-de-opinion-la-economia-chilena-en-dictadura-y-en-los-gobiernos-democraticos. Acesso em 20.07.2023.
[5] EUA, Department Of Justice. “Riggs Bank Enters Guilty Plea and Will Pay $16 Million Fine for Criminal Failure to Report Numerous Suspicious Transactions”. 27 de janeiro de 2005. Disponível em: https://www.justice.gov/archive/tax/usaopress/2005/txdv050530.html. Acesso em 13.07.2023.