Se você perguntar a um designer sobre o papel da linguagem, ele te responderá que a linguagem é um dos elementos do design. Se você fizer a mesma pergunta a linguista, ele te responderá que o design é um dos elementos da linguagem. Essa bola dividida, no entanto, encerra uma importante complementaridade, no que respeita ao Direito.
Há uma clara correlação entre Legal Design e Linguagem Simples[1], que buscam tornar o direito mais acessível ao público em geral e melhorar sua eficiência e usabilidade, tornando o sistema jurídico mais acessível, compreensível e eficaz para as pessoas, complementando-se mutuamente.
O Legal Design, por um lado, engloba diferentes disciplinas – design da informação, design de produtos e serviços, design organizacional e design de sistemas. O design centrado no ser humano permite trazer ao direito uma abordagem sistêmica, de forma que os documentos, produtos e serviços sejam desenhados intencionalmente, utilizando práticas e ferramentas apropriadas.
A Linguagem Simples, por sua vez, busca aperfeiçoar a linguagem usada nas informações relacionadas ao direito, eliminando o uso de jargões e tecnicismos desnecessários e trazendo concisão, coerência e clareza. Juntas, essas abordagens são importantes para criar uma melhor experiência para o usuário.
Enquanto o Legal Design visa a melhorar a experiência do usuário com o direito por meio da aplicação de princípios e técnicas de design, a Linguagem Simples, por sua vez, é uma ferramenta fundamental para tornar a comunicação mais compreensível para todos, independentemente do nível educacional ou da área de formação.
A fim de demonstrar os benefícios que podem ser trazidos pela aplicação do Legal Design e da Linguagem Simples, foi realizada uma pesquisa acadêmica. Com base nela, observou-se que a maioria das pessoas acredita que os documentos, produtos e serviços jurídicos podem ser melhorados de alguma forma (por exemplo, em relação a aspectos visuais, linguagem, clareza e extensão).
Nesse cenário, o Legal Design e a Linguagem Simples podem gerar uma série de benefícios que se contrapõem às dores vivenciadas pelos usuários, empoderando-os e protegendo-os, já que, muitas vezes, eles são marcados pela pobreza, pelo analfabetismo e pela compreensão limitada da linguagem utilizada em documentos com conteúdo jurídico. Assim, é possível escrever de forma objetiva, simples, clara e humanizada, sem deixar de lado a exatidão e a precisão técnica. O Legal Design e a Linguagem Simples atuam juntos como um poderoso vetor de mudanças positivas.
A essas duas se soma a Linguística Computacional, um ramo da Inteligência Artificial que lida com o processamento automático de uma língua. Ela oferece ferramentas e recursos tecnológicos que potencializam tanto o legal design quanto a linguagem simples. Deste modo, o trabalho jurídico pode ser colocado na vanguarda do desenvolvimento de soluções inovadoras, que democratizam o acesso à justiça e promovem a transparência no sistema jurídico, criando informação jurídica que é: (i) facilmente compreensível; (ii) holisticamente refinada; e (iii) cuidadosamente projetada.
Os avanços no processamento de linguagem natural (PLN)[2] permitem o desenvolvimento de sistemas e algoritmos capazes de analisar grandes volumes de dados jurídicos, traduzi-los em informações compreensíveis e oferecer respostas jurídicas melhores. Além disso, também viabilizam a criação de chatbots, assistentes virtuais e plataformas interativas que utilizam a linguagem simples e o legal design para facilitar o acesso à informação e aos serviços jurídicos.
Por exemplo, interfaces digitais amigáveis e intuitivas, combinadas com conteúdos jurídicos apresentados de forma visual e com linguagem descomplicada, podem permitir que os usuários compreendam melhor seus direitos e obrigações e tomem decisões mais bem informadas. Além disso, sistemas inteligentes podem auxiliar na pesquisa e análise de documentos jurídicos, acelerando processos de elaboração e revisão de contratos, pareceres jurídicos e demais documentos.
Essa nova forma de criar e utilizar o direito fomenta a colaboração, conduzindo as partes aos resultados almejados, criando oportunidades e prevenindo problemas antes de que eles surjam. Para isso, documentos, processos e serviços jurídicos precisam fazer sentido sob uma perspectiva de utilidade, de forma que as pessoas tenham suas necessidades atendidas de forma rápida, eficiente e justa. Assim, é possível abandonar uma realidade elaborada por profissionais jurídicos e legisladores para si mesmos, tornando o sistema jurídico navegável e reconectando o direito, os profissionais jurídicos, as organizações, o poder público e as pessoas, usuárias finais do sistema.
Para ilustrar esse impacto, mencionaremos dois casos práticos, desenvolvidos no Poder Judiciário.
O primeiro exemplo é o uso de ferramentas de Legal Design e Inteligência Artificial (IA) para traduzir as sentenças judiciais com resumos ilustrados e linguagem simples. O Projeto Simplificar 5.0: Legal Design e Inteligência Artificial: Ampliando o acesso à justiça, criado pela juíza Aline Vieira Tomas, da cidade de Anápolis (GO), aumentou o índice de satisfação dos usuários leigos, que antes tinham dificuldades para compreender a linguagem jurídica. A iniciativa foi a homenageada da Categoria Juiz do 19º Prêmio Innovare, em 2022.
No início, o trabalho de classificação das sentenças e de ilustração era feito manualmente. Com o desenvolvimento das ferramentas, foi criado um algoritmo de aprendizado de máquina para auxiliar na classificação, na confecção dos resumos ilustrados e no envio às partes por aplicativo de mensagem.
Esse trabalho resultou em feedback positivo das partes e dos advogados, redução do tempo médio de duração dos processos de 233 para 177 dias, e redução da taxa de recorribilidade de 3,1% para 1,7% (-45,16%). O time envolvido era composto por legal designers, arquiteto de software, UX/UI designer e profissionais de análise de dados e estatística.
O segundo exemplo é a linha editorial Supremo Contemporâneo, criada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), num marco da produção e difusão de conteúdo jurisdicional no Brasil. A primeira edição foi lançada em junho deste ano, focada no tema liberdade de expressão. O projeto partiu da alta administração do STF e da Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação (SAE) do tribunal.
A equipe que trabalhou no projeto era multidisciplinar, contendo tanto pessoas com formação jurídica, quanto pessoas com formação em design. Além disso, para a maioria dos membros da equipe, o projeto foi inaugural no tocante à aplicação prática dos conceitos de legal design e visual law.
Buscou-se melhorar a experiência de acesso do jurisdicionado ao conteúdo jurídico, por meio da adequação da linguagem e do uso de comunicação visual. O resultado foi um material contendo elementos visuais e linguísticos focados na usabilidade – alguns exemplos são destaques ao princípio constitucional abordado em um caso específico e o cotejo com as circunstâncias do caso concreto e os fundamentos que ensejaram a decisão.
Deste projeto resultou o livro eletrônico Liberdade de Expressão, que inaugura a linha editorial Supremo Contemporâneo, e contém os julgados do STF considerados mais relevantes para os estudiosos do Direito e para a sociedade brasileira, proferidos nos anos de 2007 a 2022.
Assim, o redesenho do sistema jurídico com base no legal design, na linguagem simples e na linguística computacional, propõe uma visão inovadora e mais humanizada, centrada nas necessidades dos usuários do sistema, possibilitando a criação de soluções mais eficientes, acessíveis e compreensíveis, contribuindo também para a prevenção de litígios e a gestão e a resolução dos conflitos.
Finalmente, se avizinha a consecução de uma sociedade mais justa e igualitária, onde direito e tecnologia convergem de maneira inovadora e inteligente, para criar uma realidade que serve, eficazmente, às pessoas.
[1] Também conhecida como Linguagem Clara.
[2] A parte teórica é conhecida como Linguística Computacional, ao passo que a parte prática é conhecida como Processamento de Linguagem Natural (PLN).