Para entender a reforma judicial israelense, sob a perspectiva jurídica, é importante contextualizar que Israel é um país que não possui uma Constituição escrita e que o “mundo” jurídico israelense é de natureza mista, constituído por uma gama de leis originárias do mandato otomano e britânico, além da coexistência com disposições religiosas (como em relação a casamento, divórcio e relações familiares), precedentes jurisprudenciais e, evidentemente, leis israelenses.
Toda a celeuma que recentemente foi objeto dos noticiários mundiais diz respeito ao fato de que o Parlamento israelense decidiu que os tribunais não podem aplicar o standard da razoabilidade no controle das decisões administrativas, governamentais ou em relação a políticas públicas.
O que significa a cláusula de razoabilidade, e sob o prisma jurídico, qual a sua relevância no âmbito de um país que, como dito, não possui uma Constituição escrita e é regido por uma variedade de normas de origens diversas?
Do ponto de vista estritamente jurídico, a decisão da Knesset (o Parlamento israelense) insere-se no plano do controle externo das funções estatais, contrastando com o chamado controle interno.
O controle interno é expressão da autotutela da Administração Pública, denominado poder-dever de revisar os próprios atos. Ou seja, havendo vícios, nulidades ou, simplesmente se o ato não mais atender os primados da “conveniência e oportunidade” ele pode e deve ser revisto pela própria autoridade administrativa ou seu superior hierárquico, cuja decisão de revogação ou alteração do ato deve ser devidamente fundamentada.
O controle externo das decisões governamentais se expressa por tribunais administrativos (no Brasil, por exemplo, são os chamados tribunais de contas) e, especialmente, o controle externo é efetuado pelo Poder Judiciário, através de ações de controle de constitucionalidade (em países que tenham Constituição escrita) ou, então, o controle de legalidade através da aplicação de standards como a mencionada cláusula de razoabilidade.
Já a cláusula de razoabilidade, como uma ferramenta utilizada para que os tribunais possam avaliar a legalidade de ações, decisões ou políticas governamentais, originária dos sistemas de common law, é um standard presente na jurisdição israelense, especialmente pela influência jurídica inglesa sobre o ordenamento legal de Israel. Ou seja, ao se tratar de aplicação judicial da cláusula de razoabilidade sobre decisões governamentais, o controle judicial visa garantir que essas decisões estejam dentro dos limites da razoabilidade, proporcionalidade e não sejam arbitrárias e ilegais.
E mais.
Ao usar esse padrão, os tribunais não reavaliam o mérito das decisões tomadas pelas autoridades, não substituem a opinião da autoridade administrativa pela opinião do Poder Judiciário ou pela opinião pessoal do juiz sobre a opção governamental. Ao contrário, os tribunais, em sede de controle de razoabilidade, verificam se os critérios e a lógica usados para chegar a essas decisões são razoáveis, proporcionais e não caracterizam abuso de poder.
Um exemplo singelo e didático pode auxiliar no dimensionamento da aplicação da cláusula de razoabilidade sem que ela interfira no mérito administrativo: admita-se que a autoridade administrativa de uma prefeitura deseja rescindir um contrato de prestação de serviços com a empresa que opera os radares de velocidade da cidade, sem que tenha ocorrido descumprimento das obrigações por parte da empresa contratada, mas por não mais convir à municipalidade o contrato em questão.
A autoridade administrativa apenas comunica a empresa da sua intenção de rescisão contratual e: (i) não concede prazo para a retirada dos equipamentos pela empresa prestadora dos serviços de operação de radares; (ii) não paga os serviços prestados até o momento que decidiu pela rescisão; (iii) não paga indenização pela rescisão antecipada.
Levada a questão ao Judiciário pela empresa prestadora dos serviços de radares, o juiz decide que, sob o ponto de vista da razoabilidade e proporcionalidade, a rescisão não seria válida ou perfeita sem a apuração de pagamento dos valores dos serviços prestados e indenização pela rescisão antecipada, além da concessão de prazo para a retirada e devolução dos equipamentos, ainda que ele, juiz, possa concordar que a opção pela implantação de outros radares seria mais conveniente ou mesmo entender ser desnecessária a presença de radares na cidade.
Dito de outro modo, os tribunais não substituem a vontade da autoridade administrativa pela sua vontade, mas analisam os motivos do ato, seus fundamentos e se a decisão foi tomada com base em critérios relevantes, compatíveis com o ordenamento jurídico ou com a própria finalidade da ação apresentada pelas autoridades governamentais.
Suprimir, por lei, standards de controle judicial, limitar este accountability, do ponto de vista jurídico e axiológico, reveste-se de extrema delicadeza, pois abala a estrutura do Estado democrático de Direito, o equilíbrio entre os Poderes, a sistemática de controle governamental e o checks and balances (freios e contrapesos), primados da convivência harmônica entre os Poderes Constituídos.
Em que pese as posições favoráveis e contrárias ao estabelecimento de uma Constituição escrita em Israel, dada a complexidade do ordenamento jurídico israelense, de matizes tão diversas, fato é que a existência de um sistema parlamentar desprovido de um sistema constitucional escrito propicia poderes legislativos ilimitados e a ocorrência de situações como a vivenciada recentemente, de esvaziamento de mecanismos de controle.