A regulação do mercado cripto e da atividade de custódia: o que está por vir?

Desde junho de 2023, está em vigor a Lei 14.478, principal arcabouço para o mercado de criptoativos no país, e o Decreto 11.563, que atribuiu ao Banco Central a competência para disciplinar a prestação de serviços no setor. Em recente nota sobre o decreto, o BC declarou que a regulamentação já está em construção e que pretende conduzir um processo de consulta pública para ouvir as diferentes partes interessadas. 

Para o BC, é o início de um trabalho infralegal complexo, mas que tem o potencial de colocar o país na vanguarda do mercado cripto. As atividades desempenhadas pelos mais diversos atores do setor têm evoluído rapidamente, conduzidas pela tecnologia de registro distribuído (Distributed Ledger Technologies ou DLT), e contribuído para a emergência de uma nova infraestrutura para o mercado financeiro. A nova missão do Banco Central é de extrema relevância para a estabilidade financeira e monetária no país.

A estrutura para a regulação do mercado cripto: quais modalidades de regras?

As normas infralegais irão seguir o princípio de “mesma atividade, mesmo risco, mesma regulação”. Em outras palavras, quando prestadores de serviços de ativos virtuais desempenharem função equivalente àquela efetuada por instrumentos financeiros e atores do mercado tradicional, eles deverão estar sujeitos a um modelo de regulação análogo. Essa é a tendência regulatória global, que está presente em recomendações de diferentes entidades internacionais.

Ao observar a experiência estrangeira, as normas para o setor têm definido tanto uma taxonomia para distintos ativos virtuais (com especial atenção às stablecoins), como a categorização jurídica de diferentes prestadores de serviços, os denominados VASPs (Virtual Asset Service Providers) ou CASPs (Crypto-Asset Service Providers). As atividades prestadas por esses atores podem envolver a custódia de ativos virtuais, a operação de plataformas, a transferência de criptoativos em benefício de terceiros, o aconselhamento e a gestão de portfólios, entre outros.

Ambas as estruturas normativas (ou seja, a taxonomia de ativos e as categorias de prestadores de serviço) são essenciais para delimitar o perímetro da regulação infralegal, as competências de diferentes autoridades, bem como a atribuição de deveres e responsabilidades a agentes de mercado. A tendência é a de que sejam definidos requisitos para a operação desses prestadores, como requerimentos de capital mínimo e exigência de seguro, concessão de autorização ou licença específicas, definição de sistemas e procedimentos de segurança, integridade e confidencialidade de informação, adesão a regras de disclosure e normas de “conheça seu cliente” (Know Your Customer ou KYC) e de prevenção à lavagem de dinheiro, definição de políticas internas de governança e gestão de riscos, inclusive de impacto socioambiental das atividades da criptoeconomia – algo particularmente relevante trazido pela regulamentação da União Europeia, a MiCA (Market in Crypto-Assets), e que estaria em linha com a agenda de sustentabilidade do BC), entre outros.

Uma atividade econômica, que é particularmente central para a futura regulamentação do Banco Central e que terá impacto relevante para a integridade do setor, é a custódia de criptoativos.

A custódia de ativos virtuais: o que e por que regular?

A custódia é o processo de guarda e proteção de ativos financeiros. O agente custodiante desempenha atividades acessórias a essa guarda, como a gestão de transações em nome e por conta de seus clientes, a manutenção do status da titularidade de ativos (ou seja, o registro de sua propriedade) e a conformidade com a legislação tributária.

No que se refere à custódia de criptoativos, o custodiante é o guardião de suas chaves privadas. Essa é a principal diferença em relação à custódia tradicional, uma vez que o prestador desse serviço na criptoeconomia não armazena o ativo em si, mas sim a chave privada que lhe concede o controle para sua movimentação.

O regime de custódia é, portanto, específico e demanda normas que tratem dos riscos próprios à natureza desse ativo. Essa atividade econômica é particularmente disciplinada pela legislação estrangeira, porque ela contribuiu para expandir o acesso a esse mercado a diferentes tipos de investidores.

A propriedade de um criptoativo por intermédio de um custodiante, como uma exchange, separa a sua titularidade do controle do ativo correspondente. O custodiante detém o poder de movimentá-lo, por armazenar a chave privada, mas a propriedade é de seu cliente. A ideia de “controle” é uma categoria particularmente tratada pelas guidelines em direito privado e ativos digitais, emitidas pelo Unidroit, que têm reflexos importantes para a regulação setorial, ainda que com ela não se confunda.

É aqui que se insere o debate sobre a necessidade de segregação patrimonial das exchanges. A segregação ou afetação é uma categoria jurídica que visa assegurar que a propriedade do criptoativo pelo cliente seja efetiva, considerando a separação entre controle e titularidade desse bem. O intuito é criar uma obrigação jurídica para o custodiante de separar os recursos dos clientes daqueles da própria prestadora de serviço.

Um dos mitos no mercado jurídico brasileiro é o de que a segregação patrimonial somente poderia ser imposta por lei, e não por um normativo infralegal. Dentro da estrutura de competências estabelecidas pela Lei 14.478 e seu respectivo decreto, o Banco Central poderia definir que o dever de segregação é relevante para a regulação setorial (especialmente, devido aos riscos que sua ausência poderia acarretar) e o impor a agentes privados. Não seria a primeira vez que o BC criaria obrigações relevantes para os agentes sob sua supervisão, no âmbito de sua competência institucional.

O objetivo e a estrutura de regras legais e infralegais também podem ser distintos. O Estado brasileiro pode querer impor deveres a custodiantes de criptoativos por meio de norma setorial, inclusive infralegal, cujo descumprimento implicaria em sanções impostas por autoridades como o BC. Por meio de uma lei, essa obrigação também seria complementar às regras do direito privado brasileiro, para assegurar a reparação decorrente da não performance de um contrato de custódia.

Ainda, o dever de segregação patrimonial pode ser disciplinado de diferentes formas pela autoridade reguladora. O BC pode definir que a afetação desses recursos deva ser feita por meio de um “pool” indivisível reunindo os ativos de diversos clientes, em que os criptoativos seriam, por definição, fungíveis entre si. Alternativamente, a autoridade poderia exigir segregação total, o que obrigaria o custodiante a controlar os ativos de clientes usando chaves privadas individuais, ou os manter em conta separada em um sub-custodiante, alocados especificamente para seus clientes.

A segregação é também relevante no caso de insolvência do custodiante. O escândalo da exchange FTX revelou a importância desse tipo de norma. A regulamentação da autoridade japonesa, por exemplo, garantiu que os clientes naquele país estivessem em melhor posição para recuperar seus recursos. A segregação é disciplinada de forma estrita no Japão, inclusive com obrigação de custodiantes manterem um percentual elevado de recursos de seus clientes em cold wallets, um mecanismo offline de guarda de criptoativos.

A custódia é apenas um exemplo de atividade que será disciplinada pelo Banco Central. Como a criptoeconomia não tem fronteiras, sua regulamentação demanda coordenação internacional de forma a evitar arbitragem regulatória. Diferentes jurisdições já emitiram seus normativos e podem servir como referência. Entidades globais também construíram standards relevantes. Espera-se que a consulta pública possa ir além e seja capaz de alimentar um debate amplo, inclusive com a realização de audiências. Mecanismos de participação social mais efetivos podem especialmente contribuir para a integridade desse (ainda) novo mercado.

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