Eleição turca expõe dificuldades de derrotar autocratas nas urnas

Duas décadas é tempo bastante para uma nação e qualquer ser humano, mas não parece ser o bastante para Recep Tayyip Erdoğan e seus partidários adeptos de uma Turquia distante do secularismo, que olha para o futuro mirando o passado de grandeza do Império Otomano. No último domingo (14), o atual presidente turco recebeu 49,5% dos votos nas eleições gerais, ficando à frente do opositor Kemal Kılıçdaroğlu, que reuniu 44,9% das preferências, muito embora tenha liderado as pesquisas eleitorais mais recentes.

A mídia ocidental, refletindo a crescente oposição de Washington e países europeus a Erdoğan, passou as últimas semanas incensando Kılıçdaroğlu, cuja vitória no primeiro turno passou a ser vislumbrada em particular após a desistência de Muharrem İnce, que havia ficado em segundo lugar na disputa de 2018 como apenas 30% dos votos. Naquele pleito, Erdoğan atingiu cerca de 53% dos sufrágios já no primeiro turno, o que em comparação aos resultados deste ano sugere um declínio em sua força eleitoral por conta da alta inflação, que atingiu 72% em 2022 contra pouco menos de 20% no ano anterior.

As raízes do apoio a Erdoğan, porém, vão muito além da esfera econômica. Ele chegou ao poder em 2003 como primeiro-ministro depois de seu partido AKP (Justiça e Desenvolvimento) ter obtido dois terços dos assentos do parlamento unicameral do país. Apesar do histórico contra o secularismo — pedra fundamental da república fundada em 1923 sob os escombros otomanos por Mustafa Kemal Atatürk —, o AKP manteve relativo respeito ao arcabouço institucional turco até a crise de 2008.

Desde então, Erdoğan percebeu haver mais margem de manobra para concentrar poderes devido ao crescimento contínuo do PIB, que quadruplicou entre 2002 e 2013, saltando de US$ 240 bilhões para quase US$ 960 bilhões. Ademais, com o declínio relativo do poder do Ocidente no pós-crise, aproximou-se de autocracias como a China e a Rússia ao mesmo tempo que manteve a Turquia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Foi exatamente em 2014, após a estabilização do crescimento, que Erdoğan candidatou-se a presidente, até então um cargo primordialmente cerimonial, como costuma ser numa república parlamentarista. Após ter sobrevivido a uma tentativa de golpe em 2016, o mandatário conseguiu que a população aprovasse em referendo a adoção a partir de 2018 do regime presidencialista na Turquia. Assim, Erdoğan consolidava o processo de concentração de poder que já havia incluído expurgos no Judiciário, no serviço público e nas universidades, além do cerceamento à mídia.

A base eleitoral do AKP concentra-se em regiões mais conservadoras e interioranas, adeptas de um papel central do islamismo — religião professada por mais de 99% dos turcos — na organização política-social. Os resultados do primeiro turno refletem essa tendência, com Kılıçdaroğlu obtendo maioria em grandes cidades, como Istambul e a capital Ancara, e nas regiões costeiras do Mediterrâneo, além do leste do país, em áreas de maioria curda — minoria étnica cujas demandas por autonomia levam o nacionalismo turco-islâmico de Erdoğan a vê-la, na prática, como entrave à unidade nacional.

A busca por um nacionalismo de cunho étnico-religioso torna inevitável comparar Erdoğan a outros líderes populistas de ultradireita, dentre eles Jair Bolsonaro no Brasil e Donald Trump nos Estados Unidos. Tal como o presidente turco, os ex-mandatários das duas maiores democracias das Américas chegaram ao poder com o apoio de grupos religiosos — cristãos, nesses casos — e governaram com uma retórica que rotula todo e qualquer opositor como inimigos da pátria enquanto desafiam as instituições.

Diferentemente de Erdoğan, Bolsonaro — em particular — e Trump entregaram resultados pouco alvissareiros na economia. Para além dos efeitos negativos da pandemia de Covid-19, Brasil e Estados Unidos possuem cada um a seu modo características estruturais que limitam a satisfação da demanda por melhores condições de vida dos estratos menos abastados da população. Entre os brasileiros, a desindustrialização não deixou alternativa à mão de obra urbana senão a busca por ocupações em serviços de baixa qualidade. Para os americanos, a globalização marcou a estagnação de uma classe média que outrora ostentava padrões de consumo elevados.

Kılıçdaroğlu, assim, deve ter um destino diferente dos que derrotaram populistas de direita no Brasil e nos Estados Unidos. Em contraste com a Turquia, esses dois países são federações, o que permite a criação de focos de resistência à autocratização mais sólidos em governos estaduais e municipais. O oponente de Erdoğan também enfrenta um entrave religioso: como membro do alevismo, corrente heterodoxa do islã, Kılıçdaroğlu enfrenta a suspeição dos mais conservadores entre a maioria sunita. Membro do CHP (Partido Republicano Popular, fundado por Atatürk), o segundo colocado na corrida eleitoral dificilmente deve atrair todos os 5,2% de votos atribuídos no primeiro turno a Sinan Oğan, da coalizão de direita Aliança Ancestral.

Enquanto Bolsonaro e Trump ficaram no poder por apenas quatro anos, 20 anos de Erdoğan transformaram a Turquia talvez de modo irreversível. Em um século de república, o país enfrentou mais períodos autoritários, em grande parte com participação militar, que democráticos. Hoje, a demanda por iliberalismo — entendido como um movimento que ignora o secularismo e a necessidade de proteção às minorias sócio-políticas — tem caráter orgânico na sociedade similar aos movimentos religiosos do Brasil e Estados Unidos que reivindicam um espaço público feito à imagem e semelhança de interpretações conservadoras do cristianismo, para não citar os elementos de supremacia branca presentes em ambos os casos.

O fato de Bolsonaro e Trump terem perdido suas respectivas tentativas de reeleição por pouco sugerem que o iliberalismo está à espreita. Na Turquia, tal movimento é mais escancarado. A comparação entre aquele país, de um lado, e Brasil e Estados Unidos, de outro, permite concluir que, se o federalismo permite resistir à autocratização, ele também pode dar sobrevida ao iliberalismo. Basta ver o que se passa em Estados governados por próceres do bolsonarismo e do trumpismo. No Estado unitário turco, o poder que importa é apenas aquele em nível nacional ainda que haja eleições para conselhos municipais e provinciais.

Aliás, desde o ponto de vista da estabilidade necessária para governar num regime presidencialista, a continuidade de Erdoğan tende a ser melhor, haja vista que o AKP e demais apoiadores conquistaram 49% dos assentos da assembleia unicameral, contra 35% da coalizão que apoia Kılıçdaroğlu. Erdoğan, assim como outros autocratas, não está sozinho em sua cruzada antiliberal.

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