O mercado jurídico brasileiro nunca sofreu tantas mudanças significativas em sua dinâmica e estrutura quanto nos últimos anos. Impulsionadas pela revolução digital e tecnológica, transformações sociais e, especialmente, um novo olhar para se fazer o Direito, as universidades brasileiras de Direito ainda passam por um grande descompasso entre as demandas reais do mundo profissional (não acadêmico) com o que é, de fato, aprendido nas salas de aula.
Na condição de estudante, trocando com colegas de diferentes instituições, somos testemunhas que as principais dificuldades que as faculdades jurídicas enfrentam para alinhar a realidade profissional e o sistema de ensino são: a defasagem do conteúdo programático, a carência no desenvolvimento de habilidades socioemocionais, a falta de integração com o mercado inovador tomado por tecnologias disruptivas e a ausência de programas práticos.
É assustador esse cenário. Logo em um ambiente que precisamos discutir novas ideias e práticas inovadoras, no lugar de gerarmos reflexão, acabamos por nos encontrar aprisionados em disciplinas que discutem cases envolvendo cheques, enquanto na realidade já se debatem fintechs, real digital, criptomoedas e pagamos as despesas usando o Pix.
Como mencionado, reforça-se que um dos grandes pilares do problema do atraso das universidades que se destaca é a defasagem do conteúdo programático em relação às necessidades do mercado. Apesar dos inúmeros cursos de graduação jurídica no Brasil, poucos são aqueles que se adequam a realidade de mercado, apresentando uma grade curricular atrasada, teórica e tradicionalíssima.
De forma geral, é fundamental que o estudante de Direito saia da faculdade muito além de um reprodutor de normas e conceitos, pois em tese, entende-se que ele teve disciplinas que o prepararam, minimamente, para os desafios reais de sua rotina advocatícia.
No entanto, muitas universidades ainda não oferecem cadeiras que abordem tecnologias, negócios e suas aplicações no Direito. Isso pode resultar em profissionais que não estão aptos a lidar com as novas demandas do mercado e que ficam para trás em relação a seus concorrentes.
Essa afirmação é baseada na legislação atual, que estabelece que as diretrizes curriculares dos cursos de Direito são definidas pelo MEC por meio de resoluções do CNE, como a Resolução CNE/CES 9/2004, com o objetivo de garantir a qualidade da formação dos estudantes[1].
No entanto, há desafios na implementação efetiva dessas e outras diretrizes pelas instituições de ensino superior, como falta de atualização dos currículos, ênfase excessiva em teoria em detrimento de prática, carência de disciplinas voltadas para a prática jurídica real do mercado, entre outros. Isso pode resultar em estudantes de Direito despreparados para o mercado jurídico, sem as competências necessárias para enfrentar os desafios da advocacia e do sistema jurídico brasileiro.
Numa perspectiva mais prática de hard skills, podemos aludir a necessidade de que os estudantes aprendam o básico (sim, o básico!) que são as principais ferramentas do Pacote Office, como Excel, Word e PowerPoint. Sem entender estes conceitos – que poderia ser oferecido pela mesma instituição de ensino – como falar de inteligência de negócios, Power BI, dashboards e indicadores? Uma vez que a rotina dos profissionais jurídicos é usar essas essenciais ferramentas para auxiliar o trabalho na criação de documentos, boas apresentações, organização, gestão dos dados, entre outros, entendo ser algo fundamental para o jovem estudante de Direito.
Vale ressaltar a importância de as salas de aula também presenciarem o ensino de outras tecnologias, como aquelas que possuem códigos para serem programadas. É essencial que o advogado inovador tenha habilidades básicas de codificação, pois qualquer produto que se é oferecido no mercado, passa por uma interface tecnológica. Além disso, demanda-se cada vez mais advogados que saibam gerir projetos de inovação e estratégia que estejam alinhados com os profissionais de tecnologia de forma multidisciplinar. Por exemplo: a automação de fluxos operacionais, os chatbots jurídicos, análises preditivas de dados (jurimetria), entre outras possibilidades.
Por fim, há outras habilidades hard skills que devem ser passadas aos estudantes e futuros profissionais do Direito. Dessa forma, podemos catequizar alguns conhecimentos que fazem toda diferença entre o advogado obsoleto e o inovador: habilidades em gestão de projetos e negócios, capacidade de análises jurimétricas, legal operations na prática, Inteligência Artificial no Direito, lawtechs, marketing jurídico para prospecção de clientes, além de administração de escritórios e startups[2].
Nesse sentido, o autor Paulo Silvestre, em seu livro Direito em Transformação – Estratégia e Inovação para Advogados, assinalou ao ressaltar a importância dessas hard skills: “Se, de um lado, há tecnologia; do outro temos as pessoas, e só elas são capazes de extrair todo o potencial das soluções tecnológicas. Afinal de contas, é o esforço delas que permite, a um determinado negócio, enfrentar o longo e difícil processo de redefinição de tarefas” [3] (PAULO, 2023, p. 14).
Em virtude disso, é sumário que as faculdades criem programas de ensino dessas habilidades aos seus alunos. Isto devido a relevância que entendam os processos de desenvolvimento de softwares e possam contribuir para a criação de soluções tecnológicas e inovadoras, tornando-se, efetivamente, advogados 4.0.
Outro problema relacionado ao despreparo das universidades de Direito é a falta de estímulo ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais. Embora a formação técnica seja importante, não é suficiente para formar um profissional completo.
Sendo assim, é preciso também desenvolver habilidades como liderança, trabalho em equipe, comunicação efetiva e resolução de conflitos. Infelizmente, muitas universidades brasileiras ainda não oferecem programas de desenvolvimento de habilidades socioemocionais para seus alunos.
Paulo Silvestre, no mesmo livro supramencionado, salientou a seguinte ideia: “Ainda hoje, são poucas as universidades que oferecem em suas grades curriculares disciplinas que discutam, por exemplo, o foco no desenvolvimento de competências comportamentais e de gestão de negócios, ficando a cargo do profissional e escritórios de advocacia a tarefa de suprir esse déficit”. (PAULO, 2023, p. 16)
Além disso, as universidades de Direito têm uma responsabilidade social em formar profissionais capazes de lidar com questões complexas e desafiadoras da atualidade a partir de matérias mais propedêuticas, como a proteção dos direitos humanos, a inclusão social, a sustentabilidade e a ética nos negócios.
No entanto, muitas instituições ainda não oferecem disciplinas que abordem, criticamente, esses temas. O que pode resultar em profissionais que não estão preparados para lidar com as demandas sociais do mercado jurídico.
Para lidar com isso, há algumas medidas que precisam ser tomadas. Em primeiro lugar, é necessário atualizar os currículos para incluir disciplinas que abordem a tecnologia e inovação no Direito. Essa medida irá ajudar a preparar os alunos para as novas tendências e ferramentas tecnológicas que são cada vez mais utilizadas no mercado.
Ainda, promover parcerias com empresas de tecnologia e startups é fundamental para oferecer oportunidades de estágio e outras formas de contato com o ecossistema de inovação. Essas parcerias podem ajudar a facilitar a transição dos alunos para o mercado de trabalho, proporcionando experiência prática em ambientes reais de trabalho.
Outra medida importante é a atualização dos professores em relação às últimas tendências e tecnologias do mercado jurídico. Isso permitirá que eles transmitam esse conhecimento aos alunos de maneira eficaz, garantindo que estejam preparados para as demandas do mercado atual. para a formação de advogados 4.0, antes de mais nada, precisamos de estagiários 4.0.
Em resumo, é necessário abordar o despreparo das universidades brasileiras de Direito frente ao mercado jurídico atual de maneira mais prática, integrada e atualizada. Isso envolve atualizar os currículos, desenvolver habilidades socioemocionais e éticas, integrar-se com o mercado, estabelecer parcerias com empresas de tecnologia e startups e adotar tecnologias avançadas. Somente com essas medidas, será possível formar profissionais competentes e atualizados para o mercado jurídico do século 21.
[1] Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES 9/2004. Brasília, 8 de março de 2004. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES09.pdf.
[2] FEIGELSON, Bruno et al. Departamento Jurídico 4.0 e Legal Operations. São Paulo: Saraiva Jur, 2022.
[3] SILVESTRE, Paulo. Direito em Transformação – Estratégia e Inovação para Advogados. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.