A volta dos que não foram: uma crônica da sobrevida da Lei de Licitações

Entre dois mundos 

Há pouco mais de dois anos, sobreveio a Lei 14.133/21, a nova (mas já não tão nova assim) Lei de Licitações. Ainda que a legislação tivesse vigência concomitante à data de sua publicação, seu artigo 191 estabeleceu um prazo de adaptação para viabilizar sua necessária regulamentação pelos diversos entes da federação, bem como o desenvolvimento de uma curva de aprendizado para sua aplicação. 

Assim, durante o período de dois anos contados da publicação da nova lei, os administradores poderiam escolher a legislação de regência das licitações processadas sob sua responsabilidade. É dizer: durante o referido prazo, poder-se-ia optar entre a aplicação da Lei 14.133/21 e o anterior corpus legislativo, composto pela Lei 8.666/93, a Lei 10.520/02 (Lei do Pregão) ou, ainda, a Lei 12.462/11 (Regime Diferenciado de Contratações Públicas ou RDC). Trata-se de uma situação excepcional de vigência concomitante de normas com mesmo objeto. 

Determinou-se que a legislação de regência escolhida deveria ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada da nova lei com a legislação anterior. Significa dizer que a inevitável tentação de fazer um patchwork entre legislações foi expressamente proibida por lei. 

Não aprendi a dizer adeus (mas deixo a Lei 8.666/93 ir?) 

Pouco antes do decurso do prazo de adaptação assinalado, a situação de implementação da nova legislação era calamitosa: relevante parte dos órgãos e entidades da Administração Pública não estava preparada para o “sepultamento” da Lei 8.666/93 e das demais normas correlatas. Não se trata de mera falta de planejamento, conforme mapeamento feito pela administração federal[1]. Estima-se que sejam necessários pelo menos 70 atos normativos para regulamentação da Lei 14.133. 

A velocidade de regulamentação da legislação foi, como era de se esperar, extremamente heterogênea. Mesmo na administração federal, que estava munida de grandes experts em matéria de compras públicas, dificuldades puderam ser notadas. Veja-se, por exemplo, a importantíssima regulamentação do Sistema de Registro de Preços[2] que, no nível federal, foi publicada apenas no último dia do prazo de adaptação originário. 

Nesse contexto, boa parte dos municípios de médio e grande porte estava à beira do colapso com o encerramento da vigência da Lei 8.666/1993 ou, como dizem em Minas Gerais, já estava em tempo de ver a avó pelas gretas. A ausência de solução de continuidade para os processos públicos de licitação – após o decurso desse prazo – fez reverberar a pergunta: como operacionalizar a aplicação de uma nova lei que depende intensamente de regulamentação, se tais normas infralegais não foram instituídas pelas autoridades competentes? 

Passaram a pulular soluções criativas e que extrapolavam o texto original da Lei 14.133/21. Confira-se, a título de ilustração, o acórdão do TCU[3], em sede de representação, com vistas à realização de estudos conclusivos acerca do prazo das regras de transição entre as leis, que assim consignou em sua parte dispositiva: 

“9.2.1. os processos licitatórios e os de contratação direta nos quais houve a ‘opção por licitar ou contratar’ pelo regime antigo (Lei 8.666/1993, Lei 10.520/2002 e arts. 1º a 47-A da Lei 12.462/2011) até a data de 31/3/2023 poderão ter seus procedimentos continuados com fulcro na legislação pretérita, desde que a publicação do Edital seja materializada até 31/12/2023;
9.2.2. os processos que não se enquadrarem nas diretrizes estabelecidas no subitem anterior deverão observar com exclusividade os comandos contidos na Lei 14.133/21;
9.2.3. a expressão legal ‘opção por licitar ou contratar’ contempla a manifestação pela autoridade competente que opte expressamente pela aplicação do regime licitatório anterior (Lei nº 8.666/1993, Lei nº 10.520/2002 e Lei nº 12.462/2011) , ainda na fase interna, em processo administrativo já instaurado”.

Embora bem-intencionada, a decisão não estava amparada pela legislação vigente e, portanto, era insuficiente para conferir segurança a todos os entes da federação que precisariam aplicar a nova lei a partir do dia 1º de abril de 2023. Escalou-se, então, a pressão de diversas entidades e representantes dos gestores em prol de maior tempo para se adaptarem à nova Lei de Licitações, a ponto de sensibilizar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 

No que seria o apagar das luzes da vetusta legislação de licitações, a Presidência da República editou a MP 1167, de 31 de março de 2023, que alterou a data de revogação da Lei 8.666/93, do Regime Diferenciado de Compras (Lei 12.462/11) e da Lei do Pregão (Lei 10.520/21). Sacramentou-se a (breve) volta dos que não foram. 

A solução provisória e um chamado para ação: réquiem para a lei de 1993 e boas-vindas à de 2021  

A MP 1167/23 tem objeto bastante simples: estender o período de adaptação para até 30 de dezembro de 2023, de modo que a administração possa optar por licitar ou contratar diretamente, de acordo com a nova lei ou com as leis citadas no inciso, desde que duas condições sejam cumpridas. A primeira é que a própria publicação do edital ou do ato autorizativo da contratação direta ocorra até 29 de dezembro de 2023 e, a segunda, é que a opção escolhida seja expressamente indicada nos referidos instrumentos. 

São menos de nove meses para a nova data de definitiva (?) despedida da Lei 8.666/93: nada mais que um breve respiro. Urge, assim, que os entes e órgãos da administração elaborem um plano de ação para a regulamentação da Lei 14.133/21, de maneira factível e consciente com as necessidades locais de cada ente federativo. 

Significa dizer que em certos momentos será valioso utilizar o benchmarking da aplicação e regulamentação da nova lei para alguns entes e, em outros casos, uma regulamentação específica, atenta às necessidades particulares de cada um. 

Uma estratégia interessante é iniciar a aplicação experimental da legislação partindo de processos mais simples e corriqueiros e evoluindo até os mais complexos. Diante da regulamentação recente do Sistema de Registro de Preços pela União, surge uma preciosa oportunidade para aceleração do processo de aprendizado da futura legislação, como bem indicou o professor Plinio Pires[4]. 

Outros problemas serão de solução mais complexa. Refletimos sobretudo sobre os desafios relacionados à digitalização a fórceps dos processos licitatórios e à integração desses processos ao Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP)[5]. 

O objetivo é louvável, mas o processo será – sem sombra de dúvida – marcado por momentos desditosos. Por ora, só conseguimos pensar na necessária solidariedade interfederativa, com a possibilidade de socorro técnico e financeiro da União aos demais entes, especialmente às municipalidades. Nesse sentido, são bem-vindas iniciativas como a implementação do ambiente de treinamento do PNCP. 30 de dezembro está logo ali e, até lá, há muito a se fazer! Mãos à obra (e aos serviços e fornecimentos)!

[1] Disponível em <https://www.gov.br/compras/pt-br/nllc/lista-de-atos-normativos-e-estagios-de-regulamentacao-da-lei-14133-de-2021.pdf>. 

[2] Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11462.htm>.  

[3] Disponível em <https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/*/NUMACORDAO%253A507%2520ANOACORDAO%253A2023%2520COLEGIADO%253A%2522Plen%25C3%25A1rio%2522/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0/%2520>.  

[4] Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=cqPAOiBBn_I>.  

[5] Disponível em <https://www.gov.br/pncp/pt-br>.  

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