Decretos: o que suas alterações qualitativas e quantitativas nos revelam?

A figura jurídica do “decreto” é peculiar na história brasileira. Embora previsto, desde a Carta Imperial de 1824 (artigo 102, XII), como ato administrativo destinado a dar boa (ou fiel) execução às leis, essa palavra sempre foi manejada de forma mais criativa. A República foi proclamada e a federação constituída por meio do Decreto 1/1889. Décadas depois, o Decreto 19.398/1930 instalou o governo provisório e dissolveu o Congresso Nacional, além de suspender as garantias individuais. Isso sem se falar que, em 1937, a assim dita Constituição foi “decretada” pela “autoridade suprema do Estado”, o presidente da República (artigo 73). Óbvio que há decretos e decretos, mas a palavra é uma só. 

Com o passar do tempo, outras foram surgindo (“atos”, “resoluções”, ou mesmo o afetuoso “decreto-lei”), em vários níveis de normatividade. Mas ele, decreto, manteve-se altivo, sempre disposto a colocar à prova a legalidade. Algumas vezes de modo sutil, outras nem tanto. Mas fato é que o manejo dessa figura revela o protagonismo atribuído ao Poder Executivo (por si mesmo ou pela lei). Atualmente, a sua profusão instala a necessidade de o repensarmos. Basta constatar alguns dados. 

Por um lado, a (quem sabe) atual Lei de Licitações (a Lei 14.133/2021) literalmente exige mais de duas dezenas de regulamentos (decretos e portarias) para sua execução; ao passo que na (talvez) antiga Lei 8.666/1993 não passavam de dois ou três. O legislador optou por criar competências regulatórias, transitando do legal para o administrativo. Por outro, há casos em que não há previsão expressa, mas o Poder Executivo promove decretos com razoável carga inovadora (como no de 10.710/2021 e nos 11.466, 11.467 e 11.468, estes de 2023, todos referentes ao setor de saneamento). Conforme eu assinalei aqui, já o Decreto 10.710 não só executa, mas instala a função de dinamização da lei: não é autônomo, tampouco puramente executivo (além de poder incidir em toda a federação).  

Para além do conteúdo normativo dos atuais decretos brasileiros, precisamos também prestar atenção no seu volume: de 1º de janeiro a 10 de abril de 2023, já foram editados 163 decretos. Em períodos análogos (os primeiros 100 dias do novo governo), em 2019 foram 93; em 2015, 44; e, em 2011, apenas 35. Evidente que há fatores dissociativos, mas uma coisa é certa: mesmo em momentos de ruptura (2019) como de continuidade (2015), na história recente não haviam sido editados tantos decretos. Isso é sinalização importante quanto ao protagonismo autoatribuído pelo chefe do Poder Executivo. 

Palavras são palavras, já cantava o Rei Roberto. Decretos nem sempre são exatamente aquilo que pensamos que sejam ou gostaríamos que fossem. Se isso fosse excepcional, este artigo não se justificaria. Mas, a partir do momento em que a fiel execução se transforma de modo intenso, qualitativa e quantitativamente falando, e assume foros constitutivos, mandamentais e dinamizadores, é necessário prestarmos atenção e, quem sabe, revisarmos os conceitos. 

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