Pesquisas em âmbito internacional mostram que o concurso público é ferramenta efetiva para melhorar a qualificação, mitigar influências políticas, reduzir a corrupção e trazer maior motivação no funcionalismo público.
Mas será que, no Brasil, os concursos já atingiram seu máximo potencial?
Estudos recentes sugerem que a resposta deve ser negativa. Isso porque o atual modelo dos concursos: “supervaloriza títulos educacionais e conhecimentos teóricos em detrimento de habilidades simplesmente essenciais de muitos cargos” (Oliveira, Castro Júnior e Montalvão, 2022); é “baseado no domínio simples de conteúdos, em detrimento do modelo de competências que pressupõe a mobilização do conhecimento para a resolução de problemas” (Coelho e Menon, 2018); e “não apresenta para o candidato as habilidades ou aptidões que precisa ter ou precisaria desenvolver para seu trabalho e tampouco considera tais características como partes integrantes do processo seletivo” (Fontainha e outros, 2015).
Há o diagnóstico, comum a esses estudos, de que as disfuncionalidades dos concursos podem decorrer, em parte, da judicialização dos certames. Isto é, a interferência do Poder Judiciário no desenho dos concursos públicos estaria dificultando uma seleção de candidatos mais efetiva, em vista das reais necessidades da administração.
Se tal leitura estiver correta, o aperfeiçoamento dos concursos depende, antes de tudo, da adequada compreensão da postura do Judiciário diante dos certames – tarefa com a qual o presente artigo busca contribuir.
Judicialização dos concursos em números
Quais as principais controvérsias judiciais envolvendo concursos públicos? Para uma resposta de cunho panorâmico (e não exaustivo), podemos utilizar a Jurisprudência em Teses elaborada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reúne os julgados mais recentes do tribunal em relação a determinados temas, consolidando-os no formato de teses.
O STJ já elaborou cinco edições de suas coletâneas de teses versando sobre concursos públicos (9, 11, 15, 103 e 115). Ao todo, isso representa 70 orientações jurisprudenciais, consolidadas com base em, pelo menos, 265 acórdãos envolvendo o tema dos concursos.
A maior parte das decisões (cerca de 42%) aborda aspectos relacionados aos instrumentos de seleção, incluindo temas como tipos de avaliação, critérios de correção, pontuação por títulos, divulgação dos critérios de avaliação, composição das bancas examinadoras e discricionariedade do gestor público para estipular as regras do edital.
O segundo maior conjunto de decisões (aproximadamente 40%) aborda aspectos relacionados aos direitos subjetivos dos candidatos, como de nomeação daqueles aprovados fora do número de vagas. O restante das decisões (cerca de 18%) cuida de temas como como restrições no edital à participação de interessados, eliminação de candidatos devido à omissão de informações relevantes na fase de investigação social e legitimação para o ajuizamento de ações questionando concursos.
Tais números parecem indicar que os instrumentos de seleção em concursos públicos de fato têm sido objeto de grande judicialização. E aqui, três temas parecem exemplificar algumas das principais preocupações do Judiciário no âmbito dos concursos públicos: adequação dos instrumentos de avaliação, publicização dos critérios de correção e utilização de exames psicológicos. São questões presentes não apenas no STJ, mas também no Supremo Tribunal Federal (STF) – e, por isso, com repercussões em todo o Judiciário brasileiro.
Adequação dos instrumentos de avaliação
O STF já fixou a tese de que “não compete ao Poder Judiciário substituir a banca examinadora para reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, salvo ocorrência de ilegalidade ou de inconstitucionalidade.” (Tema 485). Trata-se de preocupação, por parte do Judiciário, em garantir a prerrogativa da administração quanto à definição dos critérios de avaliação mais adequados frente às necessidades do serviço público.
Contudo, na prática, são frequentes as decisões analisando, por exemplo: se “exigência editalícia” apresenta “proporcionalidade com as atribuições a serem exercidas nos respectivos cargos” (RE 733.705/MG); se o “princípio constitucional da isonomia é atendido pela atribuição proporcional de pontos aos candidatos”, em vista dos “atributos e conhecimentos técnicos” aptos a demonstrar “capacidade para o exercício das atividades” (AI 830.011 AgR/RS); se título exigido “vulnera o princípio isonômico” (RE 221.966/DF).
Em casos como esses, o Judiciário, mais do que analisar a adequação dos processos e instrumentos de avaliação, tem apontado para a preocupação quanto à ausência de fundamentação nas escolhas dos métodos de seleção de candidatos.
Exigência de publicização dos critérios de correção
Outra questão que vem ganhando terreno na seara da judicialização dos concursos públicos é a exigência de publicização dos critérios utilizados pelas bancas para a correção das provas. Número crescente de decisões do STJ se debruça não apenas sobre a obrigatoriedade de divulgação desses critérios, mas também sobre o momento adequado para fazê-lo e o nível de completude esperado quanto ao espelho de correção divulgado pela banca examinadora.
O STJ entende que “é indispensável que o espelho de correção de provas de concurso público seja transparente e contenha motivação clara, apta a viabilizar eventual impugnação pelos candidatos” (AgInt no RMS 52691/DF).
Nesse sentido, o tribunal já considerou que os padrões de resposta divulgados no espelho de correção de prova prática de sentença cível e criminal em concurso para ingresso na carreira da magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) seriam excessivamente genéricos e anulou a etapa do certame (RMS 58373/RS).
A questão chegou também ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio do Procedimento de Controle Administrativo 000649725.2021.2.00.0000, que levou à virada do entendimento do CNJ para estabelecer que “recente jurisprudência do STJ impõe a publicação dos espelhos das provas escritas, antes ou concomitantemente com a divulgação do resultado, a fim de se garantir, a um só tempo, a motivação do ato administrativo e a devida observância aos princípios da publicidade e da ampla defesa”.
Tais decisões apontam para a preocupação, pelo Judiciário, de que critérios de correção das provas contem com adequados planejamento, elaboração e fundamentação – para além da questão em si da publicização.
Utilização de exames psicotécnicos
Com relação à avaliação por provas psicológicas – que englobam, por exemplo, os chamados exames psicotécnicos –, o STF já consolidou o entendimento pela constitucionalidade de tais instrumentos de avaliação em concursos públicos, desde que previstos em “lei em sentido material” e “no edital do certame”, e assegurado “um grau mínimo de objetividade e de publicidade dos atos em que se procede” (Súmula Vinculante 44).
A jurisprudência do STJ tem refletido esse entendimento, estabelecendo que, para a realização da avaliação psicológica, é necessário: suporte normativo, para assegurar previsibilidade e segurança jurídica; e que o edital preveja as condições de realização do exame, inclusive quanto à sua finalidade, para assegurar a transparência e a publicidade (REsp 1441023/CE).
São preocupações com a adequada estruturação das avaliações psicológicas em concursos públicos, inclusive quanto à definição das competências exigidas para os cargos, assegurando seu uso de modo a tornar as seleções mais efetivas.
Uma proposta para desjudicializar concursos públicos
A jurisprudência de nossos tribunais superiores indica que a gestão dos instrumentos de avaliação em concursos públicos tem sido muito debatida no Judiciário. Indica também que, em tais discussões, os tribunais têm demonstrado preocupação com o aprimoramento da gestão desses instrumentos, sobretudo no tocante à fundamentação das escolhas feitas pela administração no processo de planejamento e execução dos concursos.
Desse modo, a desjudicialização dos certames parece passar por uma melhor estruturação do processo de seleção, sobretudo no tocante às avaliações dos candidatos.
Consolidar em lei as preocupações apresentadas pelo Judiciário, e assim desjudicializar os concursos públicos, é justamente um dos objetivos do PL 2258/2022, que traz regras gerais para os concursos e está em discussão no Senado. E como o projeto busca fazê-lo?
A aposta está no planejamento estratégico dos métodos e critérios de avaliação. O projeto determina a “avaliação dos conhecimentos, das habilidades e, nos casos em que couber, das competências necessários ao desempenho com eficiência das atribuições do cargo ou emprego público” (art. 2º). Para isso, atribui à comissão organizadora o dever de “identificar os conhecimentos, habilidades e, quando for o caso, competências necessários ao exercício dos postos a prover” e, com base nisso, “decidir sobre os tipos de prova e os critérios de avaliação mais adequados à seleção” e “definir … o conteúdo programático, as atividades práticas e os aspectos comportamentais a serem avaliados” (art. 6º, II, III e IV).
Para garantir a necessária publicidade quanto à motivação das escolhas da organização, o projeto determina que “as reuniões da comissão serão registradas em atas, que ficarão arquivadas e disponíveis para conhecimento geral” (art. 5º, § 4º). O edital do concurso deverá indicar os postos a prover “com descrição de suas atribuições e dos conhecimentos, habilidades e competências necessários, que guardem correlação com as atividades a serem desempenhadas pelo servidor” (art. 7º, I).
Por fim, o projeto dispõe que decisões que impugnem o tipo de prova ou os critérios de avaliação devem considerar, à luz dos conhecimentos, habilidades e competências exigidos para o desempenho do cargo, as consequências práticas da medida (art. 12). O dispositivo tem fundamento no artigo 20, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
O PL 2258/2022 é proposta construída com base nas preocupações apontadas por nossos tribunais superiores, com o potencial de desjudicializar os certames e contribuir para a modernização dos concursos públicos.