Nos mais de 12 anos da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela Lei 12.305/2010, seu instrumento que talvez tenha ganhado maior atenção é a logística reversa: obrigação do setor empresarial de garantir que parte dos produtos e das embalagens que colocam no mercado seja encaminhada após o uso pelo consumidor para a destinação final ambientalmente adequada, sobretudo para a reciclagem.
Embora a PNRS exija a logística reversa, a lei não detalha como tal obrigação deve ser cumprida. Esse detalhamento acaba ocorrendo por meio de regulamento (ato infralegal), seja ele editado unilateral e imperativamente pelo poder público (decreto ou resolução), seja ele negociado e contratado com o setor empresarial (acordo setorial ou termo de compromisso).
No primeiro trimestre de 2023 houve uma intensa produção de decretos federais e estaduais regulamentando a logística reversa em geral e de embalagens em particular.
Em âmbito federal foram editados o Decreto 11.413/2023 e o Decreto 11.414/2023. O primeiro é um regulamento geral da logística reversa que permite comprovar o cumprimento da logística reversa individual ou coletivamente. No modelo coletivo, um conjunto de empresas cumpre seus deveres por meio das chamadas entidades gestoras, as quais organizam as atividades de logística reversa, do retorno à destinação final ambientalmente adequada.
Essa organização pode ocorrer tanto prospectivamente – a entidade gestora arrecada dinheiro da coletividade de empresas para contratar prestadores de serviços que realizem as operações de logística reversa – ou retrospectivamente – a entidade gestora primeiro contrata os operadores e depois vende às empresas títulos representativos de logística reversa, os chamados certificados.
O Decreto 11.413/2023 institui três modalidades de certificados: de reciclagem, de estruturação e de massa futura.
Os certificados de reciclagem já eram regulamentados pelo Decreto 11.044/2022, revogado pelo 11.413/2023. Eles são emitidos pelas entidades gestoras em nome e benefício das empresas a partir de dois documentos comprobatórios da movimentação dos resíduos, do retorno à destinação final ambientalmente adequada: a nota fiscal de comercialização do material reciclável e o Certificado de Destinação Final (CDF) emitido pelo reciclador.
Além dos créditos de reciclagem, o Decreto 11.413/2023 institucionalizou os certificados de estruturação, conferidos a projetos de logística reversa que criam, ampliam ou melhoram a infraestrutura e as operações de logística reversa em municípios ainda sem coleta seletiva (ou com coleta seletiva incipiente) com a participação de catadoras e de catadores de materiais recicláveis.
Esses projetos estruturantes podem valer-se do certificado de massa futura, no fundo um benefício de postergação, em até cinco anos, do cumprimento das metas quantitativas anuais (quantidade de produtos ou embalagens a ser reciclada proporcionalmente à quantidade colocada no mercado).
Por meio do Decreto 11.413/2023, pela primeira vez foi regulamentada a priorização das catadoras e dos catadores de materiais recicláveis atuantes na cadeia da logística reversa, individualmente ou em organizações. Quatro exemplos no contexto dos certificados ilustram a priorização.
Primeiro, com exceção de notas fiscais emitidas por catadoras e catadores, só são aceitas as notas fiscais de comercialização de resíduos diretamente à indústria recicladora, excluídos outros agentes de meio de cadeia. Segundo, deve ser comprovado o esgotamento de notas fiscais emitidas por catadoras e catadores antes da utilização de notas fiscais de outros operadores. Terceiro, o novo decreto não reproduz a previsão do Decreto 11.044/2022 sobre a emissão de certificados para resíduos submetidos à recuperação energética. Quarto, na própria concepção dos projetos estruturantes, exige-se que mais de 50% dos materiais recicláveis sejam provenientes de catadoras e catadores.
A prioridade é reforçada pelo Decreto 11.414/2023, que recriou o Programa Pró-Catador, revogado em 2022, agora sob a denominação Programa Diogo de Sant’Ana Pró-Catadoras e Pró-Catadores para a Reciclagem Popular e o Comitê Interministerial para Inclusão Socioeconômica de Catadoras e Catadores de Materiais Reutilizáveis e Recicláveis.
Em âmbito estadual, o número de unidades da federação com decretos próprios de logística reversa, a maioria focada em embalagens, dobrou: eram cinco até as eleições de 2022 (Mato Grosso do Sul, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo) e hoje são dez (mais Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Paraíba e Pernambuco). Os novos regulamentos (os últimos cinco estados, além de Mato Grosso do Sul, que atualizou o seu regulamento) foram baseados em uma minuta padrão para tentar corrigir incongruências conceituais e endereçar desafios práticos trazidos pelo Decreto 11.044/2022 então vigente.
A minuta foi aos poucos sendo replicada com uma amálgama de tendências já observadas em outros estados. Exemplo disso são as estratégias de fiscalização da logística reversa praticadas inicialmente por São Paulo e Mato Grosso do Sul. Enquanto em São Paulo a comprovação do cumprimento da logística reversa é, desde 2015, condição para a obtenção ou renovação da licença ambiental de operação emitida pelo órgão ambiental licenciador, em Mato Grosso do Sul existe desde 2019 uma parceria institucional entre os órgãos estaduais ambiental e de Fazenda para monitorar as empresas que colocam produtos no mercado sul-mato-grossense independentemente de estarem sediadas no estado ou por ele serem licenciadas ambientalmente.
Talvez o maior problema da atual proliferação de decretos estaduais baseada em uma minuta elaborada quando ainda vigorava o Decreto 11.044/2022, substituído e substancialmente alterado pelo Decreto 11.413/2023, seja a relação – nem sempre harmoniosa – das normas estaduais com a norma federal, o que é típico de estados federados em que todos os entes podem legislar, como o Brasil.
A falta de harmonia existe, por exemplo quando alguns dos decretos estaduais exigem a celebração de termo de compromisso (regulamento contratual de logística reversa) para a aceitação dos certificados de reciclagem ou dos sistemas estruturantes, exigência essa inexistente no Decreto 11.413/2023. Isso sem falar na criação de sistemas estaduais próprios para a emissão de certificados, na exigência de informações com detalhamento muito maior que em âmbito federal e nos diferentes prazos e modos de apresentação de relatórios anuais de resultados da logística reversa.
A evolução, inclusive da legislação, é tão inevitável quanto necessária e não há dúvida de que a logística reversa no Brasil está nesse caminho. Entretanto, a produção legislativa não indica por si só uma evolução. Para que a logística reversa continue a se desenvolver, mais que replicar uma minuta padrão nos estados ou adaptá-la à legislação federal, é necessário maior diálogo entre os entes federativos, sobretudo em aspectos que exigem tratamento uniforme em todo território nacional, de forma a não gerar insegurança para os atores envolvidos, incluindo os próprios órgãos fiscalizadores.