Com a recente divulgação do novo arcabouço fiscal pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a discussão quanto à inclusão de benefícios fiscais de ICMS na base de cálculo do IRPJ e da CSLL retomou o vigor. Conforme explanado pelo ministro, a expectativa é que a retomada da tributação “recomponha” um gap de R$ 85 bilhões a R$ 90 bilhões na arrecadação federal.
Os números parecem promissores – para alguns, até mesmo superestimados. Os contribuintes, contudo, não aparentam estar dispostos a entrar “nessa noite acolhedora com doçura”, parafraseando aqui o poeta Dylan Thomas – e as razões para tanto são diversas. Comecemos rememorando ao leitor mais incauto as origens da discussão.
A discussão remonta à redação original do artigo 30 da Lei 12.973/14, que previu que “as subvenções para investimento, inclusive mediante isenção ou redução de impostos, concedidas como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos (…) não serão computadas na determinação do lucro real, desde que seja registrada em reserva de lucros”.
Segundo o dispositivo, haveria uma distinção de tratamentos tributários entre as subvenções, conforme sua destinação: custeio ou investimento. Como, oportunamente, já elucidaram os professores Sacha Calmon, Eduardo Junqueira e Valter de Souza Lobato, “as subvenções para investimento distinguem-se das subvenções para custeio, na medida em que as primeiras, não tributáveis, prestam-se à expansão de atividades econômicas relevantes para o Estado, enquanto as subvenções correntes (para custeio e operações) fazem face às despesas correntes da empresa beneficiária, sendo alcançadas pela tributação”.
Introduzidas as premissas, não tardou para que o Judiciário fosse acionado e se multiplicassem discussões questionando 1) o enquadramento dispensado a cada subvenção; ou 2) a legitimidade de se restringir a dedutibilidade somente às subvenções para investimento, ante a aparente semelhança de regimes jurídicos.
E, contrapondo a infindável discussão e a ausência de isonomia que se instaurou, o Congresso Nacional editou a Lei Complementar 160/2017, acrescendo ao anteriormente citado artigo 30 seu §4º, prevendo que “os incentivos e os benefícios fiscais ou financeiro-fiscais relativos ao imposto previsto no inciso II do caput do artigo 155 da Constituição Federal, concedidos pelos Estados e pelo Distrito Federal, são considerados subvenções para investimento, vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstos neste artigo”.
Com a nova norma, o debate, sob uma perspectiva estritamente legalista, foi dirimido – embora, desde então, não tenham sido raras iniciativas da Receita Federal na tentativa de contornar o dispositivo, como se viu na Solução de Consulta Cosit 145/20.
Antes que o diploma fosse editado, contudo, a discussão já havia alcançado o Superior Tribunal de Justiça (STJ) – que, ao fim e ao cabo, consolidou seu entendimento sobre a matéria no julgamento do EREsp. 1.517.492/PR, no qual entendeu que a tributação de subvenções estatais, quaisquer que fossem, cria “desarmonia com valores éticos-constitucionais inerentes à organicidade do princípio federativo” e “desdobramentos deletérios no campo da segurança jurídica”.
E, considerando que, quando a discussão foi levada ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do RE 1.052.277/SC – Tema 957 de repercussão geral, o entendimento foi pela inexistência de repercussão geral na matéria, então incumbiu à superior instância a palavra final.
O introito acima expõe diversas peripécias jurídicas que terão de ser contornadas caso, efetivamente, decida-se seguir em frente com a empreitada arrecadatória. De início, será necessário contornar a atual redação do §4º do artigo 30 da Lei 12.973/14 – que, embora introduzida por lei complementar, pode ser alterada por lei ordinária, uma vez que não se trata de matéria constitucionalmente reservada.
Esse primeiro obstáculo, mesmo que transponível por quórum de maioria simples, não é trivial; afinal, requer o consenso dos parlamentares que, há não muito tempo, havia se formado em sentido favorável à não tributação. Mas o segundo óbice traz ainda maior dificuldade e é, justamente, a constatação de que o entendimento do STJ sobre a matéria foi firmado a partir da análise de cenário anterior à edição da Lei Complementar 190/2017 e a partir de premissas que dela independem – justamente, a impossibilidade de, por via da tributação de benefícios fiscais concedidos por outros entes federados, desrespeitar-se o pacto federativo e a segurança jurídica.
A independência entre as conclusões jurisprudenciais e os dispositivos legais que se pretende revogar gera mais um sinal de alerta: pode ser que a simples revisão normativa pretendida pelo ministério não resolva a questão e, ainda, agrave o contencioso sobre a matéria – o que já foi devidamente explorado em outros textos publicados no JOTA. Por todos, remete-se o leitor à recente coluna de Bárbara Mengardo.
Até aqui, a digressão somente rememorou tópicos que, em maior ou menor grau, já vêm sendo revolvidos pela doutrina. Uma questão, contudo, parece estar escapando a esse debate: a pertinência e adequação dos fundamentos adotados pelo STJ no referido paradigma.
E, desde logo, adverte-se: não há, aqui, a pretensão de discutir se a tributação, pelo IRPJ/CSLL, de benefícios fiscais de ICMS viola, ou não, o pacto federativo ou a segurança jurídica. O que se pretende destacar é que o “pacto federativo” e “segurança jurídica” são disposições de envergadura constitucional, contempladas, e.g., nos artigo 1º, 5º, XXXVI e 60, §4º, I da Constituição Federal.
Logo, a violação a essas disposições, enquanto preceitos constitucionais, deveria ser declarada pelo STF – não pelo Tribunal da Cidadania, a quem compete, também por previsão constitucional, a guarda da uniformidade da legislação federal.
Basta ver que no REsp., do qual se originou o EREsp. 1.517.492/PR, as controvérsias jurídicas levadas à corte foram as supostas violações aos artigos 535 da Lei 5.869/73 e 43 da Lei 5.172/66. Ambos dispositivos da legislação federal e que, data venia, não deságuam, per se, em ofensa ao pacto federativo ou à segurança jurídica.
Aliás, em sendo requisito de admissibilidade dos recursos extraordinários a existência de repercussão geral e em sendo uma de suas facetas a relevância jurídica, conforme artigo 1.035 do CPC, parece-nos que o Supremo, ao afirmar a inexistência de repercussão geral, já apartou, ex ante, a existência de qualquer potencial ofensa ao pacto federativo ou à segurança jurídica. Afinal, violações dessa envergadura, inegavelmente, possuem relevância jurídica e, portanto, abririam caminho para a discussão da matéria na instância suprema.
Desde logo, o autor esclarece que não se pretende aqui discutir as razões para a adequação, ou não, da tributação dos benefícios de ICMS e nem, muito menos, qualquer menoscabo ao STJ ou à douta ministra Regina Helena Costa.
A questão à qual se chama a atenção é, como bem percebeu o atento leitor, estritamente de ordem processual. E, diga-se, revela uma incongruência argumentativa que não parece encontrar guarida na repartição de competência entre os Tribunais Superiores, tal como desenhada por nosso ordenamento – carecendo, portanto, de retificação.
O debate tornará a ser enfrentado no futuro próximo, por ocasião do julgamento do REsp. 1.767.631/SC e dos demais recursos afetados ao Tema Repetitivo 1.008, no qual se avaliará se as conclusões do multicitado EREsp., que revolvem unicamente os créditos presumidos de ICMS, são extensíveis aos demais benefícios fiscais que versem sobre o tributo.
Muitos têm antecipado o receio de que o tribunal ceda à pressão arrecadatória e reveja seu entendimento ou que, por qualquer razão, reveja a posição anterior. Desse lado da rede, espero que, qualquer que seja a conclusão, estejam as razões de decidir alinhadas à sua competência constitucional.