O Supremo Tribunal Federal (STF) passou a referendar a suspensão de contratos administrativos por determinação direta de Tribunal de Contas. Tais decisões não colhem fundamento no texto da Constituição, que disciplina de modo expresso as competências desse órgão de controle (artigo 71), mas na suposta existência de um poder geral de cautela dos Tribunais de Contas.
O malabarismo hermenêutico remonta ao Mandado de Segurança 24.510[1] e resulta, principalmente, de uma equivocada aplicação da chamada “teoria dos poderes implícitos” (TPI) ao modelo brasileiro de controle externo da Administração[2]. A TPI surgiu no século 19 a partir da interpretação, pela Suprema Corte dos EUA[3], de dispositivo específico da sintética Constituição daquele país[4], e sob contexto sociopolítico alheio a nossa realidade[5].
O STF, no entanto, invocando o poder geral de cautela que decorreria da aplicação da tal teoria – a qual, no contexto da jurisprudência da corte, vale mais por seu nome do que conteúdo ou base normativa –, tem se sentido à vontade não para interpretar, mas para superar o texto constitucional. É o que se verificou, por exemplo, no desenvolvimento das decisões que autorizaram o tribunal a decretar a indisponibilidade de bens de particulares contratados[6].
Esse movimento parece ter alcançado seu ápice com o julgamento da Suspensão de Segurança 5.505, de 2022[7]. Sem desvios ou sutilezas, o pleno do STF[8] chancelou a sustação de contratos por determinação direta de Tribunal de Contas, a despeito de a Constituição expressamente indicar que, “no caso de contrato, o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso Nacional” (artigo 71, §2º).
Para grande parte da literatura especializada, o texto normativo é claro e a vedação inequívoca[9]. Os anais da Assembleia Nacional Constituinte também indicam que se trata de desenho institucional intencionalmente definido, fruto de debates e alguma reflexão[10].
O STF, contudo, não enfrenta o texto da Constituição e o desafio de interpretá-lo à luz da evolução do nosso ordenamento jurídico. Opta por sua superação a partir da invocação retórica de teoria estrangeira. Algo parece fora de lugar.
[1] Em especial, ao voto do Min. Celso de Mello. MS 24.510, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, j. 19-11-2003, DJ 19-03-2004.
[2] Para uma crítica mais aprofundada aos fundamentos utilizados para justificar o poder geral de cautela dos Tribunais de Contas, entre eles a TPI, ver LIMA, Diogo Uehbe. Competências Cautelares do Tribunal de Contas da União. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 141-159.
[3] UNITED STATES. U. S. Supreme Court. McCulloch v. Maryland. 17 U.S. 4 Wheat. 316, 316, 1819.
[4] A chamada “Necessary and Proper Clause” (Article I, Section 8): “The Congress shall have Power (…) to make all Laws which shall be necessary and proper for carrying into Execution the foregoing Powers, and all other Powers vested by this Constitution in the Government of the United States, or in any Department or Officer thereof”. UNITED STATES SENATE. Disponível em: https://www.senate.gov/civics/constitution_item/constitution.htm#a1_sec8. Acesso em: 18 abr. 2023.
[5] Discutiu-se se o Poder Legislativo federal teria competência para criar um banco público em detrimento de eventuais interesses dos estados. A Corte, interpretando a “Necessary and Proper Clause”, entendeu que tal competência legislativa estaria implícita no referido dispositivo da constituição daquele país. O debate, portanto, versava sobre o modelo de federalismo que deveria prevalecer nos EUA – questão delicada para o país, especialmente nas primeiras décadas de sua constituição.
[6] Em decisões monocráticas e colegiadas. Exemplificativamente: MS 34.446, MS 34.793, MS 35.158, MS 35.404, MS 35.506, MS 35.529, MS 35.555 e MS 35.623.
[7] SS 5.505, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, j. 07-02-2022, DJE 24-02-2022.
[8] Havia, até então, apenas decisões monocráticas (SS 5.182) ou da 1ª Turma (MS 35.038) sobre o tema.
[9] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 43. ed. São Paulo: Malheiros; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Competência dos Tribunais de Contas – impossibilidade de suspenderem a execução financeira de contratos administrativos e de fixarem valores máximos para pagamento de execução de obras públicas. In: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Pareceres de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011; SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Competências de Controle dos Tribunais de Contas – possibilidades e limites. In: SUNDFELD, Carlos Ari. Contratações públicas e o seu controle. São Paulo: Malheiros, 2013; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O papel dos Tribunais de Contas no controle dos contratos administrativos. Revista Interesse Público. Belo Horizonte, ano 15, n. 82, nov.-dez. 2013.
[10] ROSILHO, André. Tribunal de Contas da União – Competências, Jurisdição e Instrumentos de Controle. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 281.