Caso Dal Piva x Wassef evoca realidade de violações contra jornalistas mulheres

A Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) deverá decidir nesta quinta-feira (20/4) sobre responsabilização civil em caso de violação aos direitos de liberdade de expressão e de imprensa.

Em síntese, o caso de Juliana Dal Piva vs Frederick Wassef retrata a realidade violenta do trabalho de jornalistas mulheres na América Latina e globalmente e que, em suma, coloca em questionamento o que difere uma crítica construtiva e bem-intencionada da ofensa ilegítima e uma informação falsa de uma opinião pessoal. O Recurso de Apelação in concreto tem como objeto sentença que condena uma jornalista por ter divulgado informações obtidas após a divulgação de reportagem com conteúdo de interesse coletivo.

Esse é um dos pontos mais sensíveis da sentença que deu vez ao Recurso de Apelação: limites da liberdade de expressão e o exercício da liberdade de imprensa.

Wassef era uma fonte, Juliana a jornalista responsável por uma robusta reportagem resultado de uma longa investigação jornalística de interesse público. O que chama atenção no caso é o contexto de ataque à liberdade de imprensa e de expressão: âmbito privado, via WhatsApp. Após a divulgação do material de imprensa sobre um caso de corrupção, Wassef direciona deliberadamente mensagem intimidatória e vexatória a Juliana que, amedrontada e constrangida, publiciza o conteúdo integral da mensagem.

Daí se instaura o conflito entre direitos fundamentais. Wassef extrapolou ou não os limites da liberdade de expressão? Houve ou não intimidação e ataque à liberdade de imprensa? E Juliana, ultrapassou os limites do razoável ao divulgar a mensagem que recebeu? Para o juízo de primeira instância, ambas as partes incidem em prática de ilícito civil, no entanto, a decisão desconsidera o contexto, o emissor e a interlocutora conteúdo da mensagem enviada para análise do caso. Estes são elementos essenciais ao entendimento sobre responsabilidade civil aplicado ao caso.

A intimidação impregnada no conteúdo integral da resposta de Wassef atinge e provoca constrangimento em Juliana que, em nome de sua segurança, leva ao conhecimento público o teor da mensagem intimidadora e ofensiva enviada por ele via WhatsApp. Exposta ao desconforto, medo e constrangimento moral, a divulgação pública da mensagem foi utilizada como estratégia de proteção por Juliana, ciente da situação grave e recorrente na realidade brasileira e no mundo de ataques a jornalistas, principalmente mulheres. Neste cenário, cabe a pergunta: Juliana deveria ter se calado?

Seguindo a lógica do Código Civil, os efeitos objetivos e subjetivos provocados pelas ações de Wassef em relação a Juliana qualificam o ilícito civil, houve violação de direito que merecia apreciação do Judiciário. No artigo 220 da Constituição está previsto o “direito de resposta, proporcional ao agravo”. No caso, Wassef vai a público e permanece imputando a Juliana práticas profissionais antiéticas, ainda disparando informações falsas sobre o trabalho jornalístico desempenhado, colocando em xeque a seriedade e a reputação construída há anos. Portanto, relacionando os fatos ao direito, tem-se como resultado a excedência dos limites do direito de resposta, e configuração de abuso de direito.

Neste sentido, vale destaque ao paradigma na decisão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do REsp 1.903.273 determinando a exceção à regra de não divulgação de conteúdos de mensagem privadas, que é justamente o propósito de defesa de direito próprio da pessoa receptora, que, neste caso, foi intimidada e taxada de disseminadora de fake news e utilizou de todas as vias legítimas alcançáveis à defesa de sua honra e reputação que foram levadas a escrutínio público.  

Uma possível leitura jurídica do caso nos leva a compreender que no contexto do sistema de justiça pátrio, a liberdade de imprensa e da atividade jornalística, sobretudo praticada em boa-fé e compromisso com a apuração da verdade, é legítima e deve ser respeitada. Em outros termos, tendo em vista a dimensão de direito fundamental, o que deveria ter sido feito por Juliana enquanto jornalista não deveria e nem poderia ser determinado e feito ao agrado de Wassef.

O trabalho jornalístico ético e comprometido com sua função de informação coletiva só pode ser exercido em sociedades que levem o direito de liberdade de imprensa e de expressão a sério.

“Discursos odiosos”, “discriminatórios”, “informações falsas”, “desinformações” são palavras e práticas comuns no cotidiano brasileiro. Na história, estas ferramentas foram utilizadas de maneira ampla e sofisticada em contextos de sufocamento democrático para estabelecer um estado de procriação de desordem e pânico. O trabalho da comunicação social exercido conforme as previsões constitucionais é estrategicamente atacado e a violência contra esse direito é uma prática legitimada.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em notícia publicada em 2018, evidencia que no Brasil, México, Paraguai e Peru, a violência contra comunicadores é exercida particularmente pelos poderes políticos locais para censurar a circulação de informação que os desfavorece, e que é esperado o agravamento dessa tendência em anos eleitorais, por exemplo.

Na última década, uma forte onda de tendência ideológica conservadora avançou a nível global, e no Brasil o trabalho da imprensa tem se demonstrado fundamental para impedir a disseminação ligeira de desinformação e discursos discriminatórios, preconceituosos e odiosos. Há mais dados que evidenciam a crescente violência contra jornalistas pelo mundo, reforçando assim a gravidade do cenário de ataques e repressão à liberdade de imprensa e à liberdade de expressão.

Em 2021, os jornalistas Maria Ressa e Dmitry Muratov ganharam o prêmio Nobel da Paz por seus esforços para defender a liberdade de expressão. Em pesquisa realizada pela organização internacional RSF (Repórteres Sem Fronteiras), denominada “Jornalismo Frente ao Sexismo” sobre as relações entre jornalismo e sexismo, verificou-se que 36% das jornalistas entrevistadas consideram o Brasil um território perigoso para jornalistas, além de apontar as consequências concretas das violências sofridas por mulheres jornalistas.

Esta perspectiva bem descreve a realidade do Brasil, marcada pela prática recorrente de violação de direitos relacionados à comunicação e imprensa democrática, principalmente em casos em que profissionais mulheres figuram como vítimas dessas violências. O número de casos de jornalistas atacadas e intimidadas no exercício da atividade é expressivo, inclusive por serem casos levados ao Judiciário para apreciação do conflito entre direitos e garantias previstas no texto constitucional.

A liberdade de expressão e de imprensa, o direito à honra e moral subjetivas têm sido disputados na arena judicial no Brasil, sobretudo para discutir os temas de responsabilidade civil e dano moral, consequências jurídicas resultantes do extrapolamento do exercício de tais direitos em contextos complexos que exigem atuação completa de todos os atores do processo para mobilizar os conceitos jurídicos-legais, e principalmente aos julgadores responsáveis pela aplicação do direito.

A nível global, as discussões sobre o tema de liberdade de expressão e de imprensa tem apontado saídas importantes à forma como o trabalho jornalístico, exemplo disso é a recente condenação da Costa Rica pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) pela violação dos direitos à liberdade de pensamentos e de expressão de dois jornalistas, que foram desproporcionalmente responsabilizados no âmbito civil pela publicação de uma reportagem.

A decisão da Corte IDH representa importante defesa da liberdade de imprensa e da democracia e aponta uma tendência a ser observada e seguida por países como o Brasil, que carrega um histórico de intimidação e censura a jornalistas.

Nos parece, então, que o julgamento deste caso é um importante aceno do Tribunal de Justiça paulista na proteção a direitos e garantias constitucionais e direitos humanos que dão o tom do processo de retomada democrática no país.

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As autoras deste artigo representam Juliana Dal Piva na Ação Civil 1115962-16.2021.8.26.0100.

Relatório da Repórteres Sem Fronteiras. “Jornalismo Frente ao Sexismo”. Disponível em: https://rsf.org/pt/noticia/dia-internacional-da-mulher-rsf-publica-pesquisa-o-jornalismo-frente-ao-sexismo

ABRAJI. “Grave tendência de violações à liberdade de expressão na região”. Disponível em: https://abraji.org.br/noticias/grave-tendencia-de-violacoes-a-liberdade-de-expressao-na-regiao

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