STJ e STF precisam rever posição menorista ao direito de crianças e adolescentes

Não é exagero dizer que a Constituição Federal (CF) de 1988 promoveu uma revolução no direito de crianças e adolescentes. A superação da doutrina menorista que valia até então ocorreu com o contundente dever constitucional imposto à família, ao Estado e à sociedade de assegurarem, com absoluta prioridade, os direitos de crianças e adolescentes. A CF é clara: sempre que houver uma violação de direitos de crianças e adolescentes, haverá uma falha nossa, de todos nós. 

O artigo 227 da CF, que aponta os direitos das crianças e o nosso dever de assegurar esses direitos, talvez seja o mais bonito enunciado do texto de 1988. É, certamente, um dos mais ousados ao prever, de forma única em todo o texto constitucional, a prioridade de determinados direitos – não só prioridade, mas prioridade absoluta.

Tamanha ousadia normativa da CF e das leis que a regulam, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, poderia ter levado a uma explosão de litigiosidade nos tribunais brasileiros, voltados a cobrar os deveres, de todos nós, para com a prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes, sobretudo se considerarmos a realidade de múltiplas e persistentes violações de direitos no país.

Entretanto, ao observar as decisões relativas ao direito de crianças e adolescentes nos tribunais superiores nos 30 anos que seguiram à promulgação da Constituição, constata-se que ainda há muito a ser feito pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para implementar verdadeiramente o artigo 227 e ampliar o âmbito de proteção dos direitos da infância e juventude, como mostra a pesquisa “A prioridade absoluta dos direitos das crianças e adolescentes nas cortes superiores brasileiras”, recém-lançada pelo grupo Supremo em Pauta, da FGV Direito SP, em parceria com o Instituto Alana. O estudo mapeou todas as decisões proferidas pelo STF e STJ entre 1988 e 2019 envolvendo direitos das crianças e dos adolescentes. 

Nas decisões do STJ e STF, há um claro predomínio de questões relativas à responsabilização de adolescentes por cometimento de atos infracionais e punição de terceiros em casos envolvendo crianças e adolescentes. É em torno da esfera de justiça juvenil e sistema socioeducativo que se dá, na maioria dos casos, a discussão a respeito de direitos de crianças e adolescentes nesses tribunais, perspectiva que evidencia uma agenda restrita dos atores que litigam nos tribunais, muito aquém do que demanda o artigo 227 da CF. 

Invariavelmente, nestes casos há um frequente uso da expressão “menor” para se referir a crianças e adolescentes, negando, mesmo que no plano simbólico, o atual paradigma de proteção de crianças e adolescentes para resgatar a concepção menorista. 

Há, também, inegáveis avanços em decisões que tratam de educação, saúde e outras políticas sociais. Há célebres e relevantes decisões para a consolidação do direito das crianças e adolescentes com prioridade absoluta, como as que obrigam o Poder Público a fornecer vagas em creches e as que reforçam a proibição da censura em sala de aula.

Considerando todos os casos e as milhares de decisões analisadas, é possível identificar três desafios à interpretação da prioridade absoluta nos tribunais superiores. 

Em primeiro lugar, ainda há resquícios da doutrina da situação irregular nas decisões. Em algumas delas, o conceito de prioridade absoluta foi instrumentalizado para punir e o “melhor interesse” da criança e do adolescente foi utilizado como justificativa para restringir sua liberdade, reforçando, como dito, a ideia de “menores em situação irregular” e de “necessária institucionalização”.

Um segundo desafio diz respeito aos obstáculos formais à apreciação dos casos. Sobretudo no STF, diversos casos não são avaliados em razão de filtros formais à admissibilidade. A universalidade e a abrangência do artigo 227 em qualquer questão relacionada ao direito de crianças e adolescentes contrastam com uma jurisprudência restrita que exige direta e evidente violação à CF para que o recurso extraordinário seja admissível. A consequência desses obstáculos procedimentais é a perpetuação de soluções conferidas pelos tribunais inferiores, mesmo que, em alguns casos, essas decisões deturpem o significado da proteção integral.

O terceiro desafio consiste na falta de densidade normativa da noção de prioridade absoluta. No conteúdo das decisões, tanto no STF quanto no STJ, são raras as menções expressas à prioridade absoluta. Quando a mencionam, dificilmente se preocupam em desenvolver seu sentido e alcance.  

Diante disso, considerando a qualidade da fruição dos direitos por crianças e adolescentes no país, era de se esperar uma litigiosidade maior e uma interpretação, por parte dos tribunais, mais comprometida com a única vez em que a Constituição demanda prioridade absoluta a algum direito.

Um exemplo do potencial revolucionário do artigo 227 da CF e da prioridade absoluta dada aos direitos de crianças e adolescentes está representado, na pesquisa, no primeiro habeas corpus coletivo reconhecido pelo STF  em favor de gestantes e mães presas provisórias, justamente para garantir o direito das crianças à convivência familiar. O habeas corpus coletivo 143.641 STF é o responsável pelo maior volume de decisões em ambos os tribunais estudados.

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As autoras deste artigo também são autoras da pesquisa “A prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes nas cortes superiores brasileiras”, disponível desde esta segunda-feira (17) no site do Instituto Alana.

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